quinta-feira, 14 de abril de 2011

HAMLET, ATO V, CENA II.

A vida é feita de alguns momentos de euforia e muitos momentos de marasmo. Alguns se agarram ao trabalho, outros às paixões. Mas todos tentam preencher o vazio de existir com o escasso líquido de alguma felicidade. Certa vez alguém disse que o que importa é viver pelo próximo. Mas alguém se preocupa com as suas preocupações quando você pega um ônibus lotado ou cruza ombro a ombro por centenas de pessoas no centro da cidade? Todos estão tão absortos em seus problemas que simplesmente não tem tempo para pensar nessas coisas.

Acontece que a tristeza se acumula. As interdições, sejam pequenas, nas quais nos privamos de comprar algo para investir no futuro, ou grandes, onde abdicamos até mesmo do prazer em razão de uma obsessão qualquer que tinge nosso cotidiano com tintas absolutamente absurdas, dia ou outro irão romper o dique da nossa teimosia e recalque. Quando isso acontecer, pode ser tarde demais. “Mas tarde demais para o quê?”, perguntará alguém. A resposta é simples e completamente manualesca: tarde demais para tentar ser feliz.

Por isso não acredito que alguém possa ser feliz sozinho. Acredito menos ainda que liberdade tenha a ver com solidão. Isso não se relaciona com viver pelo próximo, mas em conviver com o próximo que se ama sem qualquer restrição supostamente corajosa. Se liberdade tivesse a ver com solidão, não teríamos sequer porque reclamar alguma liberdade, já que a liberdade sempre supõe algo ou alguém que nos priva de alguma liberdade. A liberdade plena é a ausência de corpo. Essas liberdades homeopáticas atrás das quais corremos vida afora, abrindo mão de tantas coisas e tantas pessoas que poderiam nos fazer felizes, apenas irão destroçar pouco a pouco as veias do nosso coração.

Mas ninguém tem culpa disso. As coisas simplesmente acontecem. Mentir para si é muito pior do que mentir para os outros. Falar a verdade de si para os outros é algo extremamente corajoso. Mas essa verdade falada, quando se trata de liberdade e de busca pela felicidade, sempre é comprometida com o momento da fala. Quanto mais liberdade se quer, mais medo se tem. Quanto mais coragem dizemos que carregamos, menos possibilidade de liberdade trazemos conosco pela razão simples de que ser livre não implica ser corajoso, mas apenas afirmativo.

A coragem está para a negação, a liberdade para a afirmação. Quem é corajoso, nega algo para tentar afirmar algo. Quem é livre, afirma algo para tentar afirmar a própria liberdade. Falar que é necessário passar por privações, sejam psíquicas ou materiais, para atingir objetivos, dizendo também que isso é um ato de coragem, é algo extremamente falso. Quando, posicionando expoentes aos fatos, o ânimo se direciona somente para um alvo, extinguindo todas as outras possibilidades, não se trata de falsidade, mas da ante-sala da loucura. Se fosse falso apenas com relação àqueles que ouvem essas palavras, não haveria problema. Mas o fato é que também é falso com aqueles que proferem essas palavras. A felicidade jamais terá a ver com uma negação, sob pena de viver enclausurada em uma camisa-de-força imaginária.

Se o desejo pela liberdade implica na existência do medo, a conquista da liberdade somente se dará com a aceitação irrestrita do medo. Essa aceitação é uma afirmação. É necessário afirmar o que tememos para nos libertar do que sofremos. Mas essa afirmação, se barrada por qualquer tipo de interdição, dará ao indivíduo que deseja a liberdade a ilusão de coragem, considerando-se que é justamente essa ilusão que fará desse indivíduo uma pessoa que jamais encontrará a liberdade que pretende pelo que ainda resta da sua vida.

Somente a afirmação liberta. A graça da vida não está em buscar graças além da vida. Entre a euforia e o marasmo, a afirmação de ambos é que levará nossas pretensões em direção ao rumo que desejamos. Qualquer interdição, qualquer negação no caminho para a liberdade, qualquer trejeito ou palavra fantasiada de coragem, surtirá sofrimento futuro. Ainda que para se viver seja necessário gostar de sofrer, a afirmação do sofrimento e da liberdade como condições para a felicidade totalmente desvinculada de qualquer negação ou interdição, de qualquer obstáculo à paixão, é a única possibilidade de se alcançar o que se quer sem frustrar aos outros e principalmente a si mesmo.

Ser livre é sempre dizer “sim!” ainda que o mundo grite “não!”. Mas se nosso “sim!” nos privar de quem ou daquilo que amamos, de quem ou daquilo que nos motiva paixão, arte e amor, ele já não será um ato afirmativo, mas uma negação: portanto uma coragem que se quer única e certeira quando em realidade apenas nos faz prisioneiros das suas grades supostamente feitas de algodão. Sem interdições ou privações, com a aceitação plena do que se sente e com a porta aberta para a paixão e para a criação, esboçando na face uma afirmação que não negue corpo e mente, é que seremos felizes. Do contrário, poderemos até alcançar aquilo que desejamos. Mas chegará o dia em que tudo o que conquistamos será pouco diante do que perdemos. E então, finalmente cientes dos nossos erros, diremos nosso primeiro “eu te amo” franco, com os olhos plenos de paixão pelo início, de amor pela existência e de uma criatividade serena marcada pelo eterno desconhecido que somos. Mas será tarde e então morreremos frustrados.

A razão da existência está no que vaza dos poros. Nada mais. Isso é ser livre, desde que a paixão, o amor e a arte sejam a constante das nossas artérias motivadas pelo amor que sentimos pela vida e pela paixão que direcionamos ao outro. Tudo muda, tudo se transforma. O único ponto final é a perversão da mudez edificada pela morte. Enquanto houver palavras, sempre haverá possibilidades. Enquanto houver encontros, trocas, caminhadas, tudo detém a chance de um rumo diverso. Negar isso é negar a vida. E negar a vida é afirmar que não merecemos viver pelo simples fato de que não afirmamos a própria existência em atos de amor e paixão condicionados pela criação eminentemente humana daqueles que somos.

Amemos. Criemos. Deixemos a paixão escorrer sem medo. “The rest is a silence.”

Basta.

5 comentários:

  1. The rest is still unwritting.

    "Sem interdições ou privações, com a aceitação plena do que se sente e com a porta aberta para a paixão e para a criação, esboçando na face uma afirmação que não negue corpo e mente, é que seremos felizes."

    Falou e disse.

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  2. Não sei bem o que é liberdade. Me parece apenas uma palavra que representa um faniquito. Bukowski, em não sei que livro, disse que o melhor lugar para um homem viver é numa prisão. Por mais ingênua que pareça essa frase, tem lá sua sabedoria.

    Hasta!

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  3. continuo achando que liberdade é um conceito tão fajutamente idealizado quanto a felicidade. não creio em ambos.

    beijo.

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  4. Blz,,,agora não penso que a "A liberdade diz sem sim". O que você me diz do perdão, o perdão é o supra sumo da liberdade. Você quebra uma cadeia natural dos animais que é "dar o troco" simplesmente dizendo não aos instintos. ...????

    vitor donatelo

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  5. Tudo quanto falei parte de um posicionamento estóico. Acho que isso explica o sentido que pretendi dar à liberdade no transcorrer de todo texto.

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