terça-feira, 26 de junho de 2012

O CARA E O CARINHA.

No Brasil, o que é público existe para ser privado e o que é privado existe para não ser visto pelo público ao menos que dê seus ares no BBB. Por notar isso, Maluf é o grande visionário da política brasileira. Sem sonegar personagens antecedentes, Maluf foi quem melhor compreendeu a cultura ibérica do privilégio, a cultura indígena da indolência e a cultura negra da magia que fazem o homem latino-americano ser o que é. Maluf é como o Cérebro do Pink, com a diferença de que, ao invés de querer dominar o mundo toda noite, decidiu se aproveitar da moralidade brasileira para engordar seu patrimônio. Antes de qualquer alucinação antropológica à Darcy Ribeiro no sentido de que aqui se daria o nascimento da grande novidade do século XXI, uma espécie de "Nova Roma" tardia e tropical com a mestiçagem atiçando o estopim da criatividade para o mundo, essa moralidade sustenta a existência social de gatos burocráticos (ou não) que furtem o respeitável cidadão nacional de cumprir com quaisquer das suas obrigações.

Diferentemente da Europa e mesmo da parcela pensante dos Estados Unidos, aqui não vale a racionalidade bem construída, o pensamento coeso e a crítica consciente. Aqui valem a sabedoria de boteco e o academicismo egoísta, o cultivo de nativismos caolhos como se fossem a forma mais avançada do que se convencionou chamar de “cultura”, e o sorriso desdentado daquele que foi sodomizado na sexta e no sábado já esquece de tudo pelo futebol na tevê. Longe do senso de coitadice generalizada que sempre disse que somos umas crianças exploradas pelos países ricos na soma zero dos proveitos recíprocos, ou do papão do neoliberalismo que é o estandarte da esquerda na consagração da razão de todas as mazelas existentes, Maluf compreendeu que é impossível se livrar do mercantilismo patrimonialista, com seus monopólios estatais, suas burocracias corruptas, seu fiscalismo predatório e seu clientelismo político que fazem a América Latina ser isso daí.

E não adianta sentar a ripa no clientelismo, por exemplo. Todos se emborracham dele pelo menos uma vez na vida. O latino-americano há tempos perdeu as ilusões da grande reforma social que lhe daria próteses dentárias, motéis gratuitos e a inexistência do SPC. Se os da esquerda se contentam com discursos que dilatam as veias do pescoço com delírios bolivarianos de igualdade e justiça, os da direita criticam tudo aquilo que pode fazer o pobre menos pobre e dizem que a cadeia é a solução final, e os do centro usam do conforto da vaselina para passar suas costas de mão em mão na suruba isonômica do Brasil, o que resta são os benefícios que se pode tirar de algum conhecido político que descole uns cargos aqui e ali para juntar alguns quinhões burocráticos que permitam a aposentadoria aos quarenta e a compra daqueles comprimidinhos que aliviam o correr dos anos para o macho dos trópicos.

Por conta disso e muito mais que nem a Biblioteca de Alexandria ou o Google dariam conta de organizar, Maluf merece todos os aplausos pela aliança recentemente firmada com Lula. Os políticos brasileiros, como disse esses dias um daqueles senadores embolorados pelo mofo das bancadas, são os “pais da pátria”. Se eles são os “pais da pátria”, nós somos os "filhos pátria", embora a substituição e a subtração de algumas letras da palavra “pátria” diga mais sobre o brasileiro que ele possa imaginar. Como bons "filhos da pátria", como iríamos questionar as intenções dos nossos "pais" pela mera desconfiança rançosa diante das suas folclóricas boas intenções para com seus rebentos?

Em um continente onde predominam representações cheias de diatribes político-sociais, truculentos ufanismos e deploráveis bairrismos nacionalistas ou não, como é o caso da arrogância dos gaúchos ao achar que o que vem do Rio Grande do Sul é simplesmente melhor, nada de diferente pode existir sob pena de esquizofrenia e choques elétricos no café da manhã. Apesar da aliança de Lula com Maluf nos causar indignação, ao menos aquietará o susto daqueles que, não tão acostumados em dar as costas para seu amante, ainda resistem à predestinada escolha do buraco que lhes foi prometido e sentenciado quando a Certidão de Nascimento e o RG lhes impingiram a simples denominação de “brasileiros”.

Se Maluf não é o cara, é ao menos a cara de todos os caras e caras que existem no Brasil, mesmo que essa cara, se não estiver na Caras, tenha de se contentar com um radinho de pilha, com a novela das oito e com um grito de “mengo!” empalado na garganta.

E o Lula? O Lula é o carinha. Ainda tem muito que aprender. 

quarta-feira, 20 de junho de 2012

NÃO SOMOS SALSICHAS!

Existem mulheres e mulheres. Existem homens e homens. Se as pessoas fossem iguais, que graça teria a vida? Toda pureza é burra. Toda pretensão de superioridade é besta. Boa é a pluralidade. Boa é a diversidade. Legal é você gostar de Godard e conhecer alguém que detém vocação apenas para “Velozes e Furiosos” – e mesmo assim, por um motivo ausente de quaisquer explicações (pra quê explicar uma emoção?), sentir algo mais que empatia pela cidadã. Alguns falarão que “afinidade estética” é fundamental. Eu rebaterei: não necessariamente. Já vi casais completamente antônimos em seus gostos que se davam às mil maravilhas. Do mesmo modo, conheci casais praticamente iguais (livros, filmes, músicas, profissões, manias pra dormir: tudo, absolutamente tudo igual) que viviam em pé de guerra. A única regra da atração é a ausência de regras. 

O estranho é que nos quesitos “atração” e “relacionamento”, temos uma sede e uma fome de regras e receitas que beira o ridículo. Quem nunca ouviu a seguinte frase: “homens são de Marte e mulheres são de Vênus?”. Me falaram, inclusive, que se trata do título de um livro – o qual de maneira alguma quero ler. Quem nunca folheou uma Cláudia (a revista, não as geografias corporais das “Cláudias” espalhadas pelo mundo – as quais me interessam bem mais que a revista) e leu: “o Universo Feminino blábláblá”? E quem jamais se deparou com a expressão “Universo Masculino”? Para mim, o único Universo possível é o Universo que habito. Os demais, ou são paralelos (ao melhor estilo Stephen Hawking) ou são lengalengas criadas por marqueteiros com o único intuito de encher sua cabeça de porcarias.

Mas o pior de tudo isso, é que você identifica claramente as mulheres adeptas de “práticas mulherzinhas” e os homens abobados em “discursos homezinhos” – aqueles que a VIP lança todo mês, por exemplo. O Facebook é um terreno fértil para proceder com tais pesquisas. Geralmente a moça que se filia à “mulherzinhices”, recheará seu mural com coisas como: “solteira sim!, sozinha nunca”; “homens ligam, meninos mandam mensagem”; “batatinha quando nasce se esparrama pelo chão (...) – Caio F. Abreu”; etc. (ad infinitum). Por outro lado, o rapaz que se quer “homezinho” irá abarrotar seus posts com imagens de carros, “humor troll”, fotos que dizem “olha!: pego todas!” ou trechos de músicas da seguinte estirpe: “eu bebo sim! / e tô vivendo / tem gente que não bebe / e tá morrendo – Velhas Virgens”. O que isso quer dizer? Muita coisa. Contudo, calma!: não sentarei a ripa em ninguém. “Cada um faz o que quer, pelo menos penso assim”, já falava o Xirú Missioneiro. Mas o que questiono é: por que as pessoas não buscam uma autenticidade ao invés de vestir a primeira “capa de personalidade” que lhes oferecem – e que geralmente detém matizes “fofuxas” ou “masculinérrimas”?

Tal fenômeno quem sabe tenha relação com algo que denominarei a partir da sigla VM – isto é: “Vício Manualesco”. O VM está em todos os lugares. Queremos manuais pra tudo. Quer enriquecer? Tem manual. Quer se suicidar? Tem manual. Quer reconquistar sua ex? Tem manual. A contemporaneidade traz consigo uma tendência que busca uma total “economização da vida”. “Que diacho é isso?”, perguntará algum leitor. Respondo: somos de um tempo no qual se crê que tudo pode ser medido em estatísticas e que receitas/regras para se conquistar o que quer que seja efetivamente existem e funcionam. Quem duvidar da realidade do VM, olhe a lista de livros mais vendidos da Veja (aquela revista semanal de piadas). Ou ligue a televisão e veja programas como aquele em que homens passam numa esteira (dessas de supermercado) para serem “escolhidos” por mulheres que tem de “conquistar” em alguns minutos (como se fossem caixas de sabonete ou garrafas de cerveja, os rapazes). Como o povo gosta disso? Não sei. Só sei que o resultado pode ser visualizado na “Mulher Samambaia”: a “coisificação do humano” (processo pelo qual a pessoa se torna coisa).

Por isso tudo é que a cada dia me torno mais chato. Cansa você conhecer pessoas que ao invés de buscar uma autenticidade na vida, querem apenas a segurança de uma boa profissão que lhes garanta um consumo elevadíssimo vida afora e carteira adentro. Cansa você conversar com indivíduos que não sabem debater, mas somente esgotar a garganta em monólogos que de razoáveis não tem nada. E cansa mais ainda a “tendência água com açúcar” que tentam nos enfiar goela abaixo em livros ao estilo Nicholas Sparks – como se a vida pudesse se esgotar nas “fofuras” de um romance de bordas tão adocicadas que parecem favo de mel (amor é “(500) dias com ela”, não “Querido John” – isso pra ficar nas recentes plagas cinematográficas). Então afirmo: não existe “Universo Masculino”, não existe “Universo Feminino”, não existe um manual de regras/receitas para qualquer coisa na vida, não existem pontos certos para nada. A existência repousa na diversidade, a vida só é vida na pluralidade e a certeza só é certeza na dinâmica da construção/desconstrução inscrita em cada segundo.

Temos que parar de buscar fórmulas pra tudo. Temos que parar de rotular as pessoas. Temos que buscar a autenticidade tatuada em nossos silêncios e os amores mais improváveis que cruzam conosco em cada esquina. Precisamos celebrar a incerteza. Precisamos da aventura do caos. Chega de medo. Chega de “cagaços de descer ladeira abaixo” – como aquela música do Paralamas. Não existe “mulher ideal”. Não existe “homem ideal”. O que existem são pessoas plenas de qualidades e defeitos que procuram a felicidade em todas as horas de suas vidas. A “economização da vida” e a “coisificação do humano” constituem processos totalmente ausentes de sensibilidade/humanidade e completamente apegados a sensos patéticos/reducionistas que buscam uma síntese da vida em 140 caracteres (como no Twitter). E se “filosofar é aprender a morrer”, como disse Montaigne, a única maneira de superarmos essas etiquetas que querem grudar em nossos traseiros é uma consciência plena disso.

Chega de “celebrar a estupidez humana” – como cantou Renato Russo. Busquemos algo real. Quanto mais autênticos formos, mais chances teremos de alcançar alguma felicidade. (Se a pessoa quer viver de rótulos e modismos, ótimo!: todos detêm o direito de pegar carona numa “Highway to Hell” e achar que isso é excelente. Mas que ao viver dessa forma, ao menos detenha noção do que está fazendo, pois liberdade só é liberdade com a consciência da escolha que implica.) Vamos abandonar os manuais. Percebamos que a beleza não reside apenas em “love songs” de “sertanejos new generation”, mas também nos versos da Hilda Hilst. Vivamos na busca de novos livros, novos filmes, novas canções e novos amores. Não somos salsichas!, não somos produtos nascidos em uma linha de montagem! Morte aos padrões! Morte ao VM! Abandonemos caminhos que nos disseram únicos, que nos disseram certos, que nos disseram sem retorno. E mais do que tudo, vamos abrir nossas mentes e corações para a celebração da vida e da incerteza, já que é aí e só aí que encontraremos o pulsar do Universo contido na beleza de cada instante da existência.

E como não sei de que modo findar essas linhas ranzinzas, concluo: this is it.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Jam n° 24 (ou "Missal de Tempo Comum").

Perseguir flores do entardecer. Encontrar eco nas ranhuras das paredes. Emudecer palavras do asfalto e travar cada vôo do olhar nas asas de um pássaro distante. Era esse seu talento. Mas isso não bastava. Precisava estourar bolhas de estrelas para que vazasse o líquen da sua essência. Necessitava contornar postes das madrugadas para que, como os bêbados do dia, traçasse um rumo diverso daquele que o levava para o escritório. Quando lá chegasse, ao menos teria o que sentir ao invés de apenas pensar e ouvir, como uma máquina que deliqüesce a Criação em seu ranger de correias e sangue. Mas sonhos vividos são diferentes de sonhos sonhados. Carregam consigo mágoa desprovida de sono. Têm olheiras e ouvidos pouco atentos, ainda que a cafeína desça pela garganta e faça do estômago um estalar de neurônios. Então tudo tinha de ser superado. Não importa se as nuvens da cidade desenham gatos no céu. Importa é que a fumaça dos sonhos sonhados, travesseiros de além, são a única vida que se pode ter quando se vive em meio a papéis e pessoas ali refletidas. Por isso arrancou forca por forca de cada esboço seu. Olhou-se no espelho e viu que seus cabelos, manchados de cotidiano, não eram o que ele queria e sentia. “Ninguém engana o tempo”, disse o seu avô. E do tempo que lhe restou, passou a esquecer de tudo aquilo que era quando estava acordado. Acostou a cabeça na cama, lançou uma colcha azul e deixou-se ser. Luzes apagadas, estalos vinham da rua e rabiscavam fotos no teto. Viu sua coelha morrer embaixo da goiabeira. Viu seu cachorro ser atropelado sem que ele pudesse fazer nada. Viu seu queixo estourando o pára-brisas do carro à sombra de um cemitério. E quando o olhar não mais suportava lembranças, deixou que os faróis se fizessem futuros. Mas nada aparecia. Era apenas o teto salpicado de iluminuras. O presente, pressentido pelas freadas na esquina, pelo histerismo de alguma adolescente, tomara a forma do amanhã. O agora era o único segredo que tinha para desvendar. Poderia voltar para o campo, imaginar o sol nascendo e se pondo por detrás dos muros que rodeavam as pitangueiras. Poderia recuperar seu emprego de viagens e cruzar a Lagoa dos Patos sem qualquer dificuldade. Comprar um telescópio, aquietar cigarros nas crateras da Lua, desmembrar Pitágoras na incongruência da posição das estrelas. Era o que lhe restava. Mas o sonho, não o sonho das lembranças ou do futuro, não o sonho do presente ou dos objetivos, areou sua íris e corrompeu seus ponteiros por dois dias. Quando o encontraram, havia em sua face um quê de olho d’água, de modo que a primeira lanterna que emoldurou sua cama foi a lanterna de uma mulher. Quieta, ela se aproximou, pôs a mão no seu peito e sentiu que não havia mais sentir naquela pele. Ligou para quem tinha que ligar e ele logo foi tirado dali. Na maca, estranharam aquele fim sem causa e por isso mesmo bem sucedido. No enterro, ao invés de gerânios, sua namorada plantou margaridas no seu túmulo. Talvez um vento da França soprasse e os propósitos de um chalé, de uma varanda e uma rede xadrez, enfim dobrassem o tecer das flores ao pôr-do-sol. Não houve qualquer discurso. Permaneceu o silêncio daqueles que tinham e daqueles que não tinham o que falar. Quando as coisas acabam, o único sentido é a quietude de alguma lágrima que escorre por baixo de óculos escuros. Mas alguém ali sabia que tudo fora culpa do avô. “Ninguém engana o tempo” não é uma afirmação: é uma profecia. Dali em diante, seu corpo aos poucos tomaria a forma que tivera antes mesmo de ser corpo. Os tecidos e os órgãos dariam vida às margaridas. De vez em quando, um gato visitaria seu túmulo e enxergaria no horizonte um perfeito retrato da sua felinice. Se não fora suficiente sua vida, se seu talento apenas trancafiara faces em papéis de um sistema fechado, não mais importava. Restou seu último teto roxo, preenchido por madeira e ferro para vibrar o ossário de uma negação completa. Mas um dia nascerá alguém que perseguirá flores do entardecer, que encontrará eco nas ranhuras das paredes e emudecerá palavras do asfalto. Então as frases, antes presas nas penas de uma página em branco, serão as herdeiras do sem-nome de uma vida qualquer, refeita da voz dos sonhos sonhados e não simplesmente vividos.

Jam n° 23 (ou "Blues Campesino para Tango ao Violão").

Ela surgiu do nada. Pediu carona e entrou no carro. Disse que queria sexo. Disse que queria pó. Beijou a boca de cerveja de cada um. Desceu as mãos pelas suas virilhas. Uma nota de cem apareceu. Ela soletrou S-I-M. O carro arrancou. Mas quando as coisas tomariam a forma da afirmação, ela, Vênus miserável, soletrou N-Ã-O. Um deles falou que aquilo não era certo. Ela queria sexo e pó. Tivera sexo e pó. Então ela tirou peça por peça e virou de costas, faca sangrando tatuagem do ombro. Um após o outro, o que fora prometido foi consumado dentro do acerto feito. Mas depois? Depois ela dormiu. Decerto havia cheirado, bebido a noite toda. Decerto, como execrada do divino, sua paz era um sono de cabelos negros. Um foi embora. O outro ficou. Estava preocupado. Olhava pra ela e pensava que ela poderia morrer. Morrer num motel é algo digno pra quem vive de camas. Mas era algo digno para ela? Quando ela acordou, disse que queria um moto-táxi. Não queria carro. Assim acabou. Sexo infeliz e ruim. Entrega afirmativa entregue à madrugada tresloucada. O que ficou foi a sujeira no corpo, na cama, na consciência e no fato de que a prometida nota de cem não chegou ao bolso dela. Ele, que ficara preocupado com ela e observara cada fenda do seu corpo enquanto ela dormia, logo desceu as escadas, abriu a garagem e também foi embora. No caminho, parou em um posto, comprou uma cerveja, ligou Atahualpa Yupanqui e pensou no campo. Na sua frente cruzou uma catadora de lixo. Perguntou se ele não tinha nenhuma lata pra ela. Ele esvaziou a cerveja no chão e entregou a lata. “Deus o abençoe”, ela falou. Com sede mas sem vontade de cerveja, foi pra casa. Fez chimarrão. Sentou na sacada. O que fora daquela noite? Sexo infeliz e ruim. Entrega afirmativa entregue à madrugada tresloucada. Melhor teria sido ficar em casa ouvindo Piazzolla. Nada mais normal pra quem um dia esteve na faculdade de música. No outro dia teria que cortar o cabelo, fazer a barba e ir trabalhar às oito da manhã. Era bom? Não. Mas não era ruim. Era melhor que aquela Vênus expulsa que surgira do nada e entrara no carro. Era melhor ter os papéis organizados, os telefones dos clientes em dia e tudo perfeitamente em ordem, do que gastar por gastar em algo que nada lhe trouxera. Mas ela surgira do nada. O que se pode esperar? Sexo, pó, álcool e conversa sem nexo. Pessoas aqui, silêncio por debaixo dos postes e algum gato branco subindo as escadarias da Catedral. Seria o caso de ouvir Tom Waits ao invés de Piazzolla? Tinha mais a ver. Voz rouca, blues desconstruído, baixo roubando tons e guitarras tomando o espaço do campo de um antes que nunca existira fora da sua idéia de campo, fora da sua idéia de palheiros, cavalos, cachaça e gado bichado. Campo do qual até chegara a falar, mas com notas que hoje lhe envergonhavam. Não se constroem tradições com metáforas. Tradições são ecos de mitos. E se a Vênus, miserável ou não, execrada ou apenas convidada a sair do divino, chegasse a se tornar mito, o outro dia seria melhor e todas as fórmulas se tornariam suportáveis. Afinal, ela surgira do nada. E é do nada que surgem os mitos. Sexo, seja infeliz, ruim ou cultivado de vícios, ainda é sexo, explosão que antes do Cosmo ser Cosmo fecundou estrela por estrela. Mas ele não fecundara nada. Gozara no chão. E dela escorria algo vermelho, amarelo, marrom. Doença? Talvez, mas não vêm ao caso. Interessa que entre o S-I-M e o N-Ã-O, a futilidade tomara a forma da sua afirmação. Mais que isso, seria pedir demais. A hora de dormir, ouvidos recheados de prazeres infecundos, logo chegaria. E ele queria dormir na cama do motel, rememorando aqueles cabelos sebosos, aquela boca molhada, aquela vagina sem pressa e aquela língua de preguiça quente. Pegou o carro, perguntou se o apartamento fora limpo e responderam que não. Dormiu na sujeira do corpo, da consciência e do fato de que a nota de cem não chegara ao bolso dela. Era sua reconciliação com papéis, telefones e clientes. O sono, como ela, pegou carona, surgiu do nada e desceu as mãos pela sua virilha.