terça-feira, 12 de junho de 2012

Jam n° 24 (ou "Missal de Tempo Comum").

Perseguir flores do entardecer. Encontrar eco nas ranhuras das paredes. Emudecer palavras do asfalto e travar cada vôo do olhar nas asas de um pássaro distante. Era esse seu talento. Mas isso não bastava. Precisava estourar bolhas de estrelas para que vazasse o líquen da sua essência. Necessitava contornar postes das madrugadas para que, como os bêbados do dia, traçasse um rumo diverso daquele que o levava para o escritório. Quando lá chegasse, ao menos teria o que sentir ao invés de apenas pensar e ouvir, como uma máquina que deliqüesce a Criação em seu ranger de correias e sangue. Mas sonhos vividos são diferentes de sonhos sonhados. Carregam consigo mágoa desprovida de sono. Têm olheiras e ouvidos pouco atentos, ainda que a cafeína desça pela garganta e faça do estômago um estalar de neurônios. Então tudo tinha de ser superado. Não importa se as nuvens da cidade desenham gatos no céu. Importa é que a fumaça dos sonhos sonhados, travesseiros de além, são a única vida que se pode ter quando se vive em meio a papéis e pessoas ali refletidas. Por isso arrancou forca por forca de cada esboço seu. Olhou-se no espelho e viu que seus cabelos, manchados de cotidiano, não eram o que ele queria e sentia. “Ninguém engana o tempo”, disse o seu avô. E do tempo que lhe restou, passou a esquecer de tudo aquilo que era quando estava acordado. Acostou a cabeça na cama, lançou uma colcha azul e deixou-se ser. Luzes apagadas, estalos vinham da rua e rabiscavam fotos no teto. Viu sua coelha morrer embaixo da goiabeira. Viu seu cachorro ser atropelado sem que ele pudesse fazer nada. Viu seu queixo estourando o pára-brisas do carro à sombra de um cemitério. E quando o olhar não mais suportava lembranças, deixou que os faróis se fizessem futuros. Mas nada aparecia. Era apenas o teto salpicado de iluminuras. O presente, pressentido pelas freadas na esquina, pelo histerismo de alguma adolescente, tomara a forma do amanhã. O agora era o único segredo que tinha para desvendar. Poderia voltar para o campo, imaginar o sol nascendo e se pondo por detrás dos muros que rodeavam as pitangueiras. Poderia recuperar seu emprego de viagens e cruzar a Lagoa dos Patos sem qualquer dificuldade. Comprar um telescópio, aquietar cigarros nas crateras da Lua, desmembrar Pitágoras na incongruência da posição das estrelas. Era o que lhe restava. Mas o sonho, não o sonho das lembranças ou do futuro, não o sonho do presente ou dos objetivos, areou sua íris e corrompeu seus ponteiros por dois dias. Quando o encontraram, havia em sua face um quê de olho d’água, de modo que a primeira lanterna que emoldurou sua cama foi a lanterna de uma mulher. Quieta, ela se aproximou, pôs a mão no seu peito e sentiu que não havia mais sentir naquela pele. Ligou para quem tinha que ligar e ele logo foi tirado dali. Na maca, estranharam aquele fim sem causa e por isso mesmo bem sucedido. No enterro, ao invés de gerânios, sua namorada plantou margaridas no seu túmulo. Talvez um vento da França soprasse e os propósitos de um chalé, de uma varanda e uma rede xadrez, enfim dobrassem o tecer das flores ao pôr-do-sol. Não houve qualquer discurso. Permaneceu o silêncio daqueles que tinham e daqueles que não tinham o que falar. Quando as coisas acabam, o único sentido é a quietude de alguma lágrima que escorre por baixo de óculos escuros. Mas alguém ali sabia que tudo fora culpa do avô. “Ninguém engana o tempo” não é uma afirmação: é uma profecia. Dali em diante, seu corpo aos poucos tomaria a forma que tivera antes mesmo de ser corpo. Os tecidos e os órgãos dariam vida às margaridas. De vez em quando, um gato visitaria seu túmulo e enxergaria no horizonte um perfeito retrato da sua felinice. Se não fora suficiente sua vida, se seu talento apenas trancafiara faces em papéis de um sistema fechado, não mais importava. Restou seu último teto roxo, preenchido por madeira e ferro para vibrar o ossário de uma negação completa. Mas um dia nascerá alguém que perseguirá flores do entardecer, que encontrará eco nas ranhuras das paredes e emudecerá palavras do asfalto. Então as frases, antes presas nas penas de uma página em branco, serão as herdeiras do sem-nome de uma vida qualquer, refeita da voz dos sonhos sonhados e não simplesmente vividos.

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