domingo, 20 de fevereiro de 2011

34334897.

O lado bom da vida só se revela de ladinho. Todo o resto é conversa de ópio. Talvez devêssemos dar crédito a quem vira amigo das traças. Mas se bibliotecas fossem importantes, o mundo não estaria abarrotado de arquivos que contém pastas que por sua vez trazem consigo todos os nossos dados. Chegará o dia em que traremos um chip implantado nas nádegas logo após o nascimento. Quando precisarmos entrar em uma repartição pública, por exemplo, mostraremos nosso traseiro a um scanner vermelho ou roxo que dirá da veracidade ou não das informações contidas no solitário pedaço de silício encravado em nosso adiposo tecido detrás.

Mas acho que esse tempo já chegou. Não da maneira como afirmo, certamente, mas que chegou, chegou. A comprovação é a quantidade de vezes que o indivíduo tem de fornecer o CPF no decorrer da vida. Se contabilizarmos, falamos mais aqueles onze números da carteirinha azul do que nossa própria alcunha de batismo. Quem sabe, para o bem do sistema que é a vara de marmelo da coletividade, não deveríamos mais ser identificados por letras, mas por números. Toda identidade existe para os outros, jamais para nós. Se é assim, o que chamamos de nome seria nosso apelido e o que chamamos de CPF seria nosso nome. Não ficaria mais prático? Quem disser “não”, jamais ligou para um 0800 ou foi a um guichê de banco.

Apesar disso, não há motivo para dramas. De mexicanas, bastam as novelas. Se dramas valessem alguma coisa, alguém lembraria da Maria do Bairro. Mas ninguém lembra. No máximo ela virou oito minutos de vídeo besta-cult no YouTube. E todos aqueles nomes compostos, como Alfredo Guilherme, Olavo Gustavo, Pedro Rodrigo e Renata Fabíola, passaram a ser motivo de piada entre os funcionários dos cartórios desse Brasil. Como se percebe, isso apenas atesta minha tese de que se nos chamássemos por números ao invés de caracteres abecedários, seríamos muito mais racionais, concisos e menos idiotas pelos cantos da existência.

Acontece que a moda não pegaria. Mesmo que estatísticas embasadas pelos mais rigorosos métodos de pesquisa digam quais serão os rumos das eleições, essas pesquisas nada seriam se não houvesse o nome dos candidatos por baixo das porcentagens. Haveriam protestos mundo afora defendendo o direito ao prenome e ao sobrenome, dizendo que os numerais, no máximo, poderiam servir para identificar os miseráveis, isto com a única intenção de que as políticas sociais, bondosas por natureza, pudessem atingir um montante cada vez maior de pobres coitados. E convenhamos que esse argumento poderia ser implantado como lei hoje mesmo caso o Congresso Nacional não fosse a casa da hipocrisia brasileira – e portanto reflexo de todos nós, comprometidos com a petrificação da miséria do nascimento à morte, o que move carreteiros dançantes e descontos no Imposto de Renda.

O que dá para perceber da impossibilidade efetiva do que defendo, é que não somos um povo prático. Gostamos de carimbos, formulários, filas, funcionários mal-humorados, protocolos, senhas e tudo aquilo que acompanha essa coisa que tanto criticamos e amamos chamada “burocracia”. Até mesmo minha proposta é um sintoma dos miolos burocráticos que trago comigo, os quais servem, ao menos na teoria, para racionalizar as operações estatais, de modo que nenhum cidadão seja privado do braço forte e da mão amiga que essa entidade invisível que denominados “Estado” crava em nós.

O fator complicador se refletiria principalmente nas músicas. Mais precisamente no que insistem em chamar de “sertanejo”, seja “colegial”, “maternal” ou “universitário”. Como falar “eu te amo” para um número? Como mandar um número catar coquinhos nas margens do Arroio Dilúvio? Seria o cúmulo da higiene. Mas se os campos de concentração nazistas foram tão eficazes em suas pretensões de extermínio ao nominar os prisioneiros com algumas siglas numéricas, certamente acharíamos uma saída para o dilema. Bastaria alterar umas rimas daqui, umas rimas dali, elencar o número sete ou o dezenove como símbolos da paixão, que tudo estaria resolvido. Os numerólogos perderiam seus empregos, mas poderiam ser contratados como técnicos de uma nova ordem baseada unicamente na matemática. Se ninguém entende o sistema tributário desse país, há algum motivo para não contratar os sábios da metafísica dos números para elencar as novas espécies de impostos que recairiam sobre os cidadãos brasileiros? É claro que nada impediria essa prática.

Se as coisas estão do jeito que estão, se ao invés de buscar alternativas para salvar o planeta vasculhamos o espaço para achar outro planeta que consumir, melhor mesmo é aceitar nossa condição de civilização suicida que permanecer na enganação sadia de uma happy hour e achar que esse é o auge da felicidade, desde que somado a um foundie com queijo uma vez por ano em Gramado. Eu gostaria de me chamar 34334897 pelo simples motivo de que não tenho a menor idéia do que significam esses números. Se houvesse algum sentido nessa sequência, desconfiaria da coesão dos próprios numerais e tudo se tornaria tão sem graça quanto frases pós-coito. O lado bom da vida é que, para ela ter um lado bom, sempre podemos variar de posição. Ou, se não seguirmos o conselho de qualquer sexóloga e mesmo daquele guia para ginastas que é o Kama Sutra, inventar algumas outras que nos dêem mais prazer que dor. Tudo codificado numericamente, óbvio, ainda que os geômetras, afeitos a conceitos que nunca entendi, como “triângulo retângulo”, perdessem completamente sua escassa sanidade, terminando seus dias em um manicômio de nome “Pitágoras”.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

WHITE HORSE COM TRÊS PEDRAS DE GELO.

O mundo é muito menor do que imaginamos. Mas existem locais onde ninguém nos acha quando queremos nos esconder. Isso confere sentido às coisas, significado àquilo reside no mistério. Acontece que a possibilidade de saber desses locais, somente se dá quando percebemos que não existem fronteiras para o nosso desejo. A vontade não acaba às margens de um rio ou na alfândega de qualquer porto, mas ultrapassa qualquer compreensão que pretenda restringir suas cordas a um mecanismo auto-suficiente, carente de novidade. O problema é que as pessoas procuram nos dizer que ela sempre será impotente frente ao mundo. É por isso que crescemos frustrados, pensando que as possibilidades da vida não podem jamais cruzar certa zona limítrofe entre a suposição da competência e a infinitude das relações que existem além dela.

Sinto isso quando converso com amigos de Santo Ângelo. A maioria se contenta com o reflexo que se acostumou a ver no espelho. Aprisionados em empregos que servem apenas para pagar suas contas e sustentar luxos miseráveis, seguem sua vida em busca de algum significado que sempre lhes escapa. Alguns partiram da cidade há tempos. São médicos, engenheiros, militares, advogados. São pessoas que, para senhores de cinqüenta e poucos anos que saboreiam seu White Horse com três pedras de gelo, podem ser chamadas de bem-sucedidas. Não duvido que não sejam. Sei das conquistas e das batalhas de muitos, tanto na cidade quanto longe dela. Mas o que me intriga é que sinto que todas as pessoas entre os vinte e os trinta anos, são portadoras de uma angústia tremenda da qual raramente conseguem dar conta, o que, se não lhes impõem amarras, solta todo e qualquer senso da sua percepção da realidade, afundando suas existências em uma movediça areia pura de despropósito.

O problema é que não há qualquer problema no despropósito das nossas atitudes. Haveria se a vida tivesse algum sentido ou alguma regra universal que caso desobedecida causasse um sofrimento eterno. Como nada disso existe, como o Big Bang é uma conseqüência da Lei da Gravidade, como nosso planeta é um apanhado de matéria que orbita uma estrela insignificante em um braço esquecido da Via-Láctea, qual é o empecilho de simplesmente viver? A resposta seria branda se fosse eminentemente científica. Mas nada do que é humano é eminentemente científico. O problema de viver “sem motivos nem objetivos”, é que isso jamais irá nos satisfazer, ainda que lutemos pelo ideal da falta de ideais.

Talvez a tristeza da minha geração tenha a ver com a possibilidade da consciência disso tudo. Sabemos que o sistema está posto e que as cartas já foram lançadas. Sabemos que nossos atos, ainda que coletivos, nem cócegas farão no estômago imenso desse monstro que come um pedaço de nós a cada hora. O mundo está dividido em marcas, não em países. As pessoas estão divididas de acordo com sua profissão, não pela causa das suas palavras ou pelo bem que porventura fizeram ou fazem umas às outras. O que dói é perceber que possivelmente as coisas sempre foram assim, mas somente a minha geração aceitou a falta de sentido de tudo isso, mergulhando no insosso de um almoço que, como gasolina ou álcool para os carros, apenas serve para nos manter em pé.

Não existe cura para essa sensação de intermitente mal-estar. Existem festas, drogas, paixões, estudos e filmes dos quais você esquece assim que sai do cinema. Mas cura, nem mesmo a música seria capaz de trazer. Perdidos em um deserto que nos dá a noção de norte e sul por conta de neons espalhados na aresta de cada pedra, formamos um bando bem vestido, nutrido até demais, informado das mil e uma inutilidades do mundo das celebridades, mas insciente do rumo que suas pernas tomarão quando se derem conta de que o chão não é de asfalto ou vidro, mas simplesmente de areia.

Mas a felicidade é possível. Quem sabe um olhar, quem sabe um abraço, quem sabe o esquecimento dessas pretensões que temos para encher a casa com quinquilharias que sobreviverão mais que nós, traga uma pequena amostra disso que se esconde em cada xícara de café mas é abafado pelo barulho dos caminhões. O assombro habita a casca das maças, as dobras dos lençóis, o choro pela saudade e a dor pelos desencontros. Mas como tentamos encarar a vida como se estivéssemos em um estúdio hollywoodiano, esperando holofotes dizerem nossa dor mais que nossa boca, confundimos sinceridade com franqueza, preferindo a mentira dos individualismos à verdade da bela tragédia diária que é respirar enquanto tudo morre.

Não é necessário desespero. É necessária uma serenidade que ultrapasse qualquer meditação imbecil, qualquer prece que gire ao redor da própria ignorância, qualquer sinal que nos traga uma suposição de bem-estar quando em realidade denuncia nosso temor pelo que a vida é. O mundo não acaba nas barrancas de um rio e muito menos nos lugares em que o passaporte é a condição de entrada e saída. As possibilidades do mundo são infinitas. Quem descobrir o sossego, seja no trânsito ou no alto de um edifício, observando a poluição de tudo do vigésimo sexto andar, saberá que existe um fundo insubornável no ser humano, velado por milênios de dor e prazer. Aí é que estamos, esperando que as garrafas da nossa consciência, jogadas na maré de um inconsciente tormentoso, despertem em nós o amor pela pele, pelo corpo de bicho e pelas palavras de santo que todos tem o privilégio de trazer consigo. Somente a consciência plena da nossa insignificância é que trará algum significado para nossas vidas, gerando a partir daí alguma possibilidade solidária. Todo o mais é auto-engano.

Sou de uma geração forjada pela angústia, pintada pelo esquecimento e vendida pela dor: o que nos preenche é a falta.