quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

WHITE HORSE COM TRÊS PEDRAS DE GELO.

O mundo é muito menor do que imaginamos. Mas existem locais onde ninguém nos acha quando queremos nos esconder. Isso confere sentido às coisas, significado àquilo reside no mistério. Acontece que a possibilidade de saber desses locais, somente se dá quando percebemos que não existem fronteiras para o nosso desejo. A vontade não acaba às margens de um rio ou na alfândega de qualquer porto, mas ultrapassa qualquer compreensão que pretenda restringir suas cordas a um mecanismo auto-suficiente, carente de novidade. O problema é que as pessoas procuram nos dizer que ela sempre será impotente frente ao mundo. É por isso que crescemos frustrados, pensando que as possibilidades da vida não podem jamais cruzar certa zona limítrofe entre a suposição da competência e a infinitude das relações que existem além dela.

Sinto isso quando converso com amigos de Santo Ângelo. A maioria se contenta com o reflexo que se acostumou a ver no espelho. Aprisionados em empregos que servem apenas para pagar suas contas e sustentar luxos miseráveis, seguem sua vida em busca de algum significado que sempre lhes escapa. Alguns partiram da cidade há tempos. São médicos, engenheiros, militares, advogados. São pessoas que, para senhores de cinqüenta e poucos anos que saboreiam seu White Horse com três pedras de gelo, podem ser chamadas de bem-sucedidas. Não duvido que não sejam. Sei das conquistas e das batalhas de muitos, tanto na cidade quanto longe dela. Mas o que me intriga é que sinto que todas as pessoas entre os vinte e os trinta anos, são portadoras de uma angústia tremenda da qual raramente conseguem dar conta, o que, se não lhes impõem amarras, solta todo e qualquer senso da sua percepção da realidade, afundando suas existências em uma movediça areia pura de despropósito.

O problema é que não há qualquer problema no despropósito das nossas atitudes. Haveria se a vida tivesse algum sentido ou alguma regra universal que caso desobedecida causasse um sofrimento eterno. Como nada disso existe, como o Big Bang é uma conseqüência da Lei da Gravidade, como nosso planeta é um apanhado de matéria que orbita uma estrela insignificante em um braço esquecido da Via-Láctea, qual é o empecilho de simplesmente viver? A resposta seria branda se fosse eminentemente científica. Mas nada do que é humano é eminentemente científico. O problema de viver “sem motivos nem objetivos”, é que isso jamais irá nos satisfazer, ainda que lutemos pelo ideal da falta de ideais.

Talvez a tristeza da minha geração tenha a ver com a possibilidade da consciência disso tudo. Sabemos que o sistema está posto e que as cartas já foram lançadas. Sabemos que nossos atos, ainda que coletivos, nem cócegas farão no estômago imenso desse monstro que come um pedaço de nós a cada hora. O mundo está dividido em marcas, não em países. As pessoas estão divididas de acordo com sua profissão, não pela causa das suas palavras ou pelo bem que porventura fizeram ou fazem umas às outras. O que dói é perceber que possivelmente as coisas sempre foram assim, mas somente a minha geração aceitou a falta de sentido de tudo isso, mergulhando no insosso de um almoço que, como gasolina ou álcool para os carros, apenas serve para nos manter em pé.

Não existe cura para essa sensação de intermitente mal-estar. Existem festas, drogas, paixões, estudos e filmes dos quais você esquece assim que sai do cinema. Mas cura, nem mesmo a música seria capaz de trazer. Perdidos em um deserto que nos dá a noção de norte e sul por conta de neons espalhados na aresta de cada pedra, formamos um bando bem vestido, nutrido até demais, informado das mil e uma inutilidades do mundo das celebridades, mas insciente do rumo que suas pernas tomarão quando se derem conta de que o chão não é de asfalto ou vidro, mas simplesmente de areia.

Mas a felicidade é possível. Quem sabe um olhar, quem sabe um abraço, quem sabe o esquecimento dessas pretensões que temos para encher a casa com quinquilharias que sobreviverão mais que nós, traga uma pequena amostra disso que se esconde em cada xícara de café mas é abafado pelo barulho dos caminhões. O assombro habita a casca das maças, as dobras dos lençóis, o choro pela saudade e a dor pelos desencontros. Mas como tentamos encarar a vida como se estivéssemos em um estúdio hollywoodiano, esperando holofotes dizerem nossa dor mais que nossa boca, confundimos sinceridade com franqueza, preferindo a mentira dos individualismos à verdade da bela tragédia diária que é respirar enquanto tudo morre.

Não é necessário desespero. É necessária uma serenidade que ultrapasse qualquer meditação imbecil, qualquer prece que gire ao redor da própria ignorância, qualquer sinal que nos traga uma suposição de bem-estar quando em realidade denuncia nosso temor pelo que a vida é. O mundo não acaba nas barrancas de um rio e muito menos nos lugares em que o passaporte é a condição de entrada e saída. As possibilidades do mundo são infinitas. Quem descobrir o sossego, seja no trânsito ou no alto de um edifício, observando a poluição de tudo do vigésimo sexto andar, saberá que existe um fundo insubornável no ser humano, velado por milênios de dor e prazer. Aí é que estamos, esperando que as garrafas da nossa consciência, jogadas na maré de um inconsciente tormentoso, despertem em nós o amor pela pele, pelo corpo de bicho e pelas palavras de santo que todos tem o privilégio de trazer consigo. Somente a consciência plena da nossa insignificância é que trará algum significado para nossas vidas, gerando a partir daí alguma possibilidade solidária. Todo o mais é auto-engano.

Sou de uma geração forjada pela angústia, pintada pelo esquecimento e vendida pela dor: o que nos preenche é a falta.

Um comentário:

  1. Ótimo texto! Também gostei muito de sua obra "Não somos salsichas!", é incrível o prazer de uma boa leitura, de textos como esses que, pra mim, me fazem sorrir, analisar e pensar a respeito. Parabéns Eduardo M. Frizzo!

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