quarta-feira, 27 de julho de 2011

Jam n° 6.

A perda nos constrói. Mas não apenas a perda: também o amor. Embora o amor não exista para nos trazer felicidade, mas para fazer com que nos sintamos vivos, mesmo que vagando em meio a um deserto pretensamente geométrico de expectativas fracassadas, é esse o binômio fundamental que nos torna sujeitos. Mas sujeitos a quê? a quem? do quê? Certamente da dor e das imagens que o sol desenha de galho em galho em uma manhã de segunda-feira – dessas nem quentes nem frias, mas úmidas. Talvez a ternura resida justamente nessa umidade: umidade de lábios que de tão afetuosos, tão dispostos a se dar, envelhecem saliva em cada pequena saliência, como se o abismo de olhar para as coisas e descobrir que não existe qualquer expectativa que dure mais que o gosto de uma cereja se desmembrando na boca fosse a única alegria que algum dia pudéssemos vir a ter. Mas não há agonia nesse sentir – há uma piscina vazia onde amantes de uma noite são vozes de juras desconexas e negações que sempre acabam na partida: agonia, porém, não há. Numa sala vazia, colunas arredondadas filtrando a luz do dia, poderá existir a sensação do abandono em um bilhete que diz “você obrigada eu” e mais nada. Mas quando essas palavras forem lidas, quando a língua abandonar a biologia pura e se transformar em verbo delineado por uma tradição, uma cultura qualquer, esse abandono se esvai, pois compartilhado – como a chuva que no final goteja e atesta a doença de quem vive para sentir, e sentindo repete, repete, repete. Quem sabe seja à deriva, estrangeiros até mesmo aos estrangeiros, que possamos alcançar essa verdade com cheiro de café frio. Ausente de êxitos, prancheta rabiscada por orientações com não mais que três traços, ela confundirá de início, freará qualquer compreensão ao primeiro olhar, mas revelará todo seu conteúdo quando as estruturas enfim se souberem vazias e preenchidas com nada mais que inutilidades. Poderá se ouvir uma música chiada, dessas de cinqüenta, setenta anos, armazenada nas rugas de um disco, trazer algum sentido para todas essas ações. Ainda que seus versos soem incompreensíveis, invariavelmente ela falará de perda, de dor, de despedida, pontuando bordão por bordão cada sentido que até o momento, grávido de completo despropósito, era o motivo para as cores da manhã. Assim é que um sono arenoso, dado ao compasso distante dos carros, substituirá nas veias o sangue, tornando o corpo um peso de braços, pernas, boca e buracos. Mais que isso, esqueça. Diz ao final que tudo está bem – nem que seja por conveniência, diz: é necessário. Soletra um sorriso, apaga uma memória, olha para frente, ergue a cabeça e segue na direção exata do próximo sofrimento. Lenta e comodamente, a vida arranjará motivos para estar – pois quando disseram que todos sempre têm de encontrar alguém, era mentira. Só existimos pelo e no impossível. Nossa força sobrevive aí.

*Texto escrito a partir de impressões sobre o filme “Insolação” (Brasil, 2009), dirigido por Felipe Hirsch e Daniela Thomas.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

AS CEROULAS DE CORAÇÃOZINHO.

As comunidades detêm uma dupla face. Se por um lado favorecem laços afetivos entre seus membros, proporcionando, em tese, uma maior qualidade de vida para eles, por outro lado promovem uma vigilância desses membros, de maneira que o menor desvio de conduta que não seja compartilhado pelo senso comum como algo “normal” passa a ser punido. Cidades pequenas ou de médio porte, ainda que não sejam necessariamente comunidades, funcionam do mesmo modo, o que se comprova pelo fato de que em Santo Ângelo as fofocas e os boatos estão na ordem do dia de qualquer conversa que se queira missioneira.

Mas o que é interessante nas fofocas e nos boatos, é que geralmente aquele que é alvo do falatório é o último a saber do falatório. Talvez a lógica da cornitude dos cornos valha não somente para seus galhos, mas também para esses indivíduos, os quais, quando chegam a determinado círculo de conversas, percebem que um silêncio imediatamente se instala com a sua presença, circundado por olhares entre a desconfiança, o riso e o sarcasmo da crueldade da palavra. Mas isso não seria nada se as fofocas e os boatos não influenciassem todos os aspectos da vida desses indivíduos, desfilando seus tentáculos de escárnio até mesmo para sua vida profissional.

Porém, esse não é o fator mais curioso das fofocas e dos boatos. Saber que existem pessoas que falam mal de X, Y ou Z, todos sabem. É impossível conviver em sociedade agradando todos com os quais se convive. A inveja, a vaidade e o egoísmo, sentimentos existentes até no mais santo dos homens, estão presentes por toda parte, o que se percebe quando conversamos com uma pessoa e notamos que ela não está nos ouvindo, mas apenas esperando o seu momento de falar. A realidade peculiar dos boatos e das fofocas, por outro lado, é notada quando se sabe que ainda que o sujeito alvo do falatório tenha tomado algumas atitudes “normalmente errôneas” em sua vida, aqueles que falam desse sujeito tiveram atitudes “iguais” ou “piores”, mas, talvez por conivência da própria comunidade em razão da posição que ocupam na sua estrutura social, não acabaram sendo “mal falados”.

Claro que dívidas não pagas fazem surgir sangue nos olhos de qualquer um, pois todas as pessoas mudam completamente quando se fala de dinheiro. Com certeza que desavenças entre amigos em razão de uma namorada, por exemplo, não são coisas que se resolvem de uma hora para outra, até porque, por envolverem sexo, o qual, de um modo ou de outro, é a razão das nossas vidas, podem resultar em tiros e facadas. Mas acontece que as fofocas e os boatos, quando atingem um homem “razoavelmente público”, costumam ser sufocadas pelo esquecimento que as “pessoas não-públicas” acabam tendo em relação ao fato, tratando seus olhares desconfiados e sarcásticos como algo corriqueiro na moralidade cotidiana e egoísta por essência, já que, ocupada em olhar para os sapatos dos outros, termina por não perceber o próprio guedes que calça.

O recente caso envolvendo um vereador de Santo Ângelo que teve determinado vídeo de celular veiculado no Youtube é uma prova disso. Quase todos sabem do assunto, mas poucos o comentam em razão de certo “acordo de cavalheiros” que existe com os homens que tem certa fama na cidade. O próprio fato do Maluf ser tão mal falado há tantos anos no Brasil e sempre estar em cargos políticos, também é uma prova incontestável do que falo. Quanto mais conhecida a pessoa, mais existe a tendência de que seus “erros” sejam esquecidos, isto porque aqueles que falam podem se aproveitar desses mesmos erros para conseguir favores dessa pessoa “mal falada”.

Se é um despautério moral existirem tantas funerárias perto dos hospitais da cidade, fazendo com que os pacientes observem a possibilidade da morte das suas janelas, não interessa. Todos falam, mas ninguém quer entrar em uma suposta polêmica sobre o tema. Se é uma hipocrisia a quantidade de “carrões” que temos na cidade sob propriedade de pessoas que os financiam em cem vezes e ainda assim posam de “ricas” e “influentes”, fazendo com que mais de setenta e cinco por cento da nossa frota de veículos esteja nas mãos dos bancos, igualmente não interessa, já que o importante em Santo Ângelo é manter as aparências. Se o enorme orçamento do Estado do Rio Grande do Sul para atividades tradicionalistas acaba por sufocar outras manifestações artísticas muito mais importantes para o nosso desenvolvimento cultural, não é importante discutir, sendo que aqueles que se aproveitam desse orçamento sempre estão no rol de “pessoas respeitadas” e “dignas” da sociedade. Nada disso, apesar de talvez estar presente nas conversas em todas as lojas e escritórios da cidade, vêm ao caso para um debate público, amordaçando as opiniões contrárias à “normalidade” no limbo das paredes do seu quarto, refletindo bêbadas, entre polares e fins, a situação deplorável do Estado, do país e do município.

Tudo isso atesta a realidade de que existe algo repulsivo em nossa cordialidade cotidiana. Mesmo que Santo Ângelo seja uma cidade belíssima, a moralidade predominante dos seus habitantes faz com que ela se torne tão indigna de contato quanto os leprosos medievais. Apesar de sermos uma cidade que conta com quase oitenta mil pessoas, a aceitação do “diferente” esbarra nos risos desconfiados e irônicos que esse “diferente” suporta quando entra em uma roda de conversas “comum”. A estagnação missioneira não se relaciona apenas com nosso atraso econômico, mas também com nossa resistência ao “novo” e àquilo que passa distante do que acreditamos ser “correto”. Se somos uma comunidade, conceitualmente não posso afirmar. Mas que somos uma cidade polarizada pelas aparências, nas quais as fofocas e os boatos, polvilhados pela hipocrisia e pela mentira, são até mesmo um recurso certeiro para quem deseja “crescer” nas suas fronteiras, posso afirmar e assinar embaixo. Além de sermos a cidade da elite arrogante e da juventude falida, somos a cidade não da moral de cuecas, mas da moralidade de ceroulas de coraçãozinho. Condenada ao cheque especial e aos carnês de financiamento, ela tem sua consciência aliviada pela madrugada atrás do Teatro Antônio Sepp e todos os prazeres que ela traz consigo.