quarta-feira, 30 de março de 2011

sábado, 26 de março de 2011

Desintitulado n° 22.

O ritmo é o contra-senso do caos. Ele ordena. O caos bagunça. Os sentidos são o pólo inverso do pensar. Eles sentem. O pensar fala. Mas impressões, sejam pegadas ou tatos, sejam salivas ou gostos amanhecidos, são razões do ritmo, do caos, dos sentidos, do pensar e do falar. Elas, combustível do criar, tatuam passos pelo gozo das encostas, tendo como bússola unicamente o prazer das estações. Aí toda estrutura desmorona: sentindo, não sentido. As verdadeiras geografias são gasosas. Delas só vemos o vapor no vidro.

sábado, 19 de março de 2011

Desintitulado n° 21.

“If you should go skating
On the thin ice of modern life
Dragging behind you the silent reproach
Of a million tear stained eyes
Don't be surprised, when a crack in the ice
Appears under your feet
You slip out of your depth and out of your mind
With your fear flowing out behind you
As you claw the thin ice”

Pink Floyd, This thin ice.

1.
Uma estrutura de liberdade não garante uma liberdade de estrutura.

2.
Um mundo pensado na ausência de substantivos é desprovido de sentido. Quando somente aparecem verbos designando ações que não espelham quaisquer modelos, toda busca de significado é nula. O movimento predomina.

3.
A fronteira é limite. Limite construído ou simplesmente existente, constitui o ponto culminante que delimita os contornos de um lugar. Conceito utilizado mesmo na psicologia, pode se referir a indivíduos que se encontram nas bordas da loucura e por algum motivo simplesmente não caem nas suas garras. Conseqüentemente, o mensageiro sempre vem da fronteira. Mas quando as fronteiras se diluem, de onde virá?

4.
A areia no pátio parece uma árvore de Lynch: têm boca sem fundo. Tudo se torna jazz.

5.
- A sobrancelha é a vírgula do corpo - ela diz.
- Se a sobrancelha é a vírgula do corpo, todo olhar é uma explicação - respondo.
- Mudo de assunto, gosto de azul - continua.
"Isso explica tantos equívocos da distância", penso.

quinta-feira, 10 de março de 2011

A ESPIRAL DO SILÊNCIO.

Quem abriu algum jornal nos últimos meses, certamente se deparou com a seguinte manchete: “Caso Bruno”. Da mesma maneira, quem acompanhou os noticiários do país nos últimos anos, com certeza leu outras manchetes semelhantes: “Caso Richthofen”, “Caso Isabella”, Caso João Hélio”, “Caso Madeleine McCann”, “Caso Daniela Perez”, etc. O que isso demonstra, é o fato de que de tempo em tempo sempre aparece algum crime que pela divulgação maciça da imprensa acaba gerando uma enorme comoção popular, de modo que todas as atenções são voltadas para as repercussões desse crime em incontáveis desdobramentos jornalísticos. O que cabe comentar não é a natureza dos crimes, mas a razão de tantas pessoas se sentirem comovidas por esses casos ao ponto de vibrarem com a condenação dos acusados, como aconteceu quando da leitura da sentença do Casal Nardoni.

Ao que parece, não é o crime em si que gera tamanho clamor, mas sua excessiva divulgação pela imprensa, a qual, de uma ou de outra forma, produz uma visão excessivamente unilateral dos acontecimentos. Essa unilateralidade, porém, aparenta uma certa imparcialidade que não condiz com o próprio vício da imagem que existe nos meios televisivos, por exemplo. Não existe a menor dúvida de que o destino do Casal Nardoni poderia ser completamente diferente não fosse a atenção que o assassinato de Isabella Nardoni recebeu da imprensa. De forma idêntica, a discussão acerca da possibilidade de redução da maioridade penal não teria tamanha força nos últimos anos não fosse a cobertura intensa do assassinato do menino João Hélio no Rio de Janeiro ou o caso de estupro e assassinato de Liana Friedenbach em São Paulo.

Esse jornalismo preocupado com a divulgação desses crimes em todos os seus pormenores, aponta uma tendência da sociedade contemporânea relacionada com a “eleição” de determinados sujeitos que servem como uma espécie de expiação para as pessoas extravasarem uma indignação contida que em outros casos jamais chegaria a acontecer. Somando isso ao trato que certos apresentadores de televisão dão aos crimes, marcado por um pedantismo quase religioso que geralmente liga o crime com a ausência de fé em Deus ou com a ineficácia do Estado, forma-se um pano de fundo extremamente propício à profusão de opiniões que muito dificilmente irão se diferenciar daquela presente em grande parte da população, o que ocorre justamente pela atenção que a imprensa dá a esses casos.

Isso tudo lembra a Teoria da Espiral do Silêncio, de autoria da pesquisadora alemã Elisabeth Noelle-Neumann. Segundo Noelle-Neumann, os indivíduos buscam a integração social através da observação da opinião dos outros, procurando se expressar dentro dos parâmetros defendidos pela maioria com a intenção de evitar o isolamento. Nesse sentido, as pessoas tendem a esconder opiniões contrárias à ideologia majoritária, dificultando assim a mudança de hábitos com a finalidade da manutenção do seu status social. Essa opção pelo silêncio ocorre pelo medo da solidão social, onde as pessoas, influenciadas pelo que os outros dizem ou pelo que poderiam dizer, optam pelo silêncio quando suas opiniões correm o risco de não ter receptividade na sociedade. Dessa maneira, mudanças sociais somente ocorreriam quando houvesse um sentimento já dominante, o que passa invariavelmente pela imprensa.

O resultado desse processo é uma espiral silenciosa que incita as pessoas a perceber as mudanças da opinião pública e a seguí-las até que uma determinada opinião se estabeleça como atitude dominante, fazendo com que outras opiniões sejam rejeitadas ou evitadas pela maioria. Conforme Noelle-Neumann, a Espiral do Silêncio trabalha com três mecanismos que condicionam seu funcionamento: acumulação, devido ao excesso de exposição pela mídia de determinado assunto, consonância, relacionada à forma como as notícias são produzidas e veiculadas, e ubiqüidade, a qual está para a presença da mídia em todos os lugares. Juntos, esses mecanismos determinam a forte influência da imprensa sobre o público e seu papel determinante na formulação da percepção da realidade nesse público.

Elisabeth Noelle-Neumann chegou a essa teoria ao analisar uma mudança súbita nas pesquisas de opinião nas eleições alemãs entre 1965 e 1972, identificando o fato de que os eleitores procuravam ajustar suas opiniões de acordo com a opinião dominante, direcionando seu voto ao candidato que se apresentava como vencedor. As opiniões contrárias à maioria tendiam a recair em uma espiral silenciosa, o que, para a pesquisadora, ocorreria em razão do medo do isolamento social que uma opinião contrária ao padrão dominante difundiria em grande parte da população. O resultado disso, por meio da acumulação, da consonância e da ubiqüidade, dispôs o “clima de opinião” e o próprio resultado das eleições alemãs da época.

Diante desse cenário, é impossível não relacionar o modo como certos fatos são relatados pela imprensa com a opinião dominante que a população tem sobre eles. Não se discute a culpabilidade ou não dos sujeitos envolvidos em determinados crimes, mas a maneira aparentemente imparcial através da qual esses crimes são tratados. O bombardeio constante e repetitivo de imagens e textos, certamente provoca o surgimento de um senso comum pouco reflexivo revestido com ares de revolta branda, promovendo uma “eleição” de acontecimentos que merecem pouca ou demasiada atenção por parte da imprensa. Pouco importa se o Bruno, por exemplo, é culpado ou não. O que importa é que falar sobre isso vende – e muito.

terça-feira, 1 de março de 2011

TEMPO TRANSITIVO.

“Money, it's a crime. / Share it fairly but don't take a slice of my pie.”

Pink Floyd, Money.

Somos de um tempo onde a liberdade está vestida com uma precária roupagem capitalista, onde a cultura se transformou em mercadoria da indústria do entretenimento, onde as pessoas acreditam ser aquilo que podem comprar e onde o desenvolvimento nada tem a ver com uma existência melhor. De um tempo onde a indústria dos tranqüilizantes químicos está entre os setores que têm crescimento cada vez maior nas últimas décadas, onde os serviços de segurança privada são mais procurados do que nunca, onde os planos de saúde consistem numa obrigação para quem pode pagá-los, onde a pornografia aparece como um grande negócio para solitários, onde seitas que oferecem salvação a preço módico proliferam aos milhares, onde livros e artefatos de auto-ajuda vendem fórmulas para uma felicidade repleta de ânsia e onde drogas detém um consumo elevadíssimo por todas as classes sociais. Um tempo onde a infelicidade se eleva a proporções gigantescas e atinge um contingente tão amplo que acaba sendo absorvida pelo sistema no qual estamos inclusos, tornando-se mero objeto de manipulação mercantil.

Somos de um tempo onde se diluiu a distância entre crise e normalidade, onde a possibilidade do desemprego, a violência sempre presente, a preocupação com o desamparo em caso de doença ou com a chegada da velhice e as dúvidas sobre o futuro dos filhos, trazem a sensação de que uma vida com um horizonte amplo, sólido e aberto se torna cada vez mais distante. Somos de um tempo onde predomina uma impressão desestruturante, um desgoverno das expectativas, um sentimento do provisório, uma incerteza intermitente como pano de fundo para todas as nossas ações. De um tempo onde a elite está sempre pensando no próximo bom negócio e o povo planejando a estratégia de sobrevivência para o próximo dia. Um tempo onde se aprofunda o fosso entre o conformismo do pensamento, a pobreza da comunicação e a profundidade da crise na qual estamos imersos. Tempo onde os fatos cotidianos debilitam os laços de sociabilidade civilizada, fazendo ruir todo um regime comum de valores que tinha como certa a mobilidade social ascendente e a idéia de um futuro em construção.

Somos de um tempo onde o desempenho das bolsas de valores, a entrada de capital estrangeiro no país e as oportunidades de bons negócios que se abrem aqui e ali, ocultam com números o sofrimento humano crescente por todas as partes do globo. De um tempo onde no espaço se expandem as zonas esvaziadas de qualquer cobertura do direito, onde a segregação das oportunidades destina os pobres do presente à certeza da pobreza futura, onde os valores, dominados pelo discurso econômico, validam a desigualdade com a finalidade de estimular um esforço geral que faça crescer a lucratividade dos empreendimentos por meio de uma motivação constante daqueles que dependem de certas empresas para sobreviver. Um tempo onde a globalização do grande capital trouxe a fragmentação do mundo do trabalho, a exclusão de grupos humanos, o abandono de continentes e regiões, a concentração da riqueza em certas corporações e países e a fragilização da maioria dos Estados. Tempo onde quanto mais a rentabilidade capitalista descola das atividades produtivas, mais essa rentabilidade descola também das necessidades humanas, as quais continuam a se expressar na forma de necessidade de trabalho e bens essenciais para que a própria vida seja possível.

Somos de um tempo onde a economia transforma o mundo, mas o transforma apenas em mundo da economia. De um tempo que esqueceu o próprio sentido do tempo e conta as horas como quem conta o saldo da conta bancária ou trocados para comprar o pão da manhã. Um tempo no qual tudo se têm e no qual tudo se perde unicamente porque tudo se tornou questão de lucro para acalmar a infelicidade intermitente de cada dia que nasce. Acima de tudo, de um tempo desprovido de tempo para pensar, pois se nos déssemos conta de tudo quanto nosso tempo nos traz a cada instante de vida desperdiçado em uma vida feita para o consumo, jamais aceitaríamos essa vida que vivemos para um tempo ausente de tudo aquilo que é humano, preenchido pelo cair de moedas que abafa a angústia incessante desse tempo transitivo.