terça-feira, 28 de dezembro de 2010

C'EST LA VIE.

Roberto Bolaño me olha da estante. Calhamaço de mais de mil páginas. “2666”. Esse é o nome do livro. Fiquei muito feliz quando encontrei ele na Feira do Livro de Porto Alegre desse ano. Mas como começar a leitura com esse calor? E pior: como escrever o capítulo que falta da minha dissertação de mestrado com a pressão baixa? É uma tarefa pra lá de complicada. Quanto mais pelo fato de estarmos no nefasto mês de dezembro.

O Günter Grass também está ali. “Nas Peles da Cebola”. Comprei motivado pelo fantástico “O Tambor”. Recomendo inclusive o filme de 1979 com a direção do Volker Schlöndorff. Mas confesso que li só umas dez páginas. Simplesmente não rolou. Deu algo como um estranhamento. Como saber que aquela deusa morena que você queria tanto ao seu lado não usa o desodorante adequado. Um amigo me contou isso esses dias e fiquei estupefato. É impressionante como o mínimo pode nos destruir.

Vejam essas bactérias que existem por aí. As indústrias de limpeza ganham rios de dinheiro dizendo que temos de estar com a casa limpa e tal. Eu mesmo, no apartamento em que morava há algum tempo atrás, tinha a mania de fincar detergente em tudo quanto é canto. Dos ácaros, se não me livrava, ao menos perfumava. Mas o irritante é que essa coisa de bactérias sempre vai perseguir a gente. E não será como uma pulga atrás da orelha. Ao contrário, será como um milhão de pulgas andando por todo corpo. Da coceira jamais nos livraremos.

Por falar em coceira, esses tempos resmunguei que escrever coça. Hoje isso me parece uma contradição em termos, embora a frase até funcione. A realidade é que escrever não é tão difícil quanto dizem. As pessoas é que estão muito presas a certos recalques imaginários e assim tentam copiar fulano e cicrano nas suas linhas, o que as torna chatas pra caramba. Quanto a minha chatice, ela é até registrada em cartório, como há muito afirmo. Mas apesar de carregar uns respingos do Quintana, umas manchas do Nassar e uma grande vontade de ir tão fundo quanto a Hilda Hilst, creio que essa voz que agora se faz letra provém da minha garganta e só dela.

Um desses teóricos de plantão poderia reavivar aquela máxima de que nada se cria e tudo o mais. Também diria que na atualidade a profusão de vozes é tanta que é impossível identificar um autor. Em dias de racionalidade extrema, até concordaria. Mas hoje só posso dizer que isso é uma frescura tremenda. Afinal das contas, suando aqui no inferno de Santo Ângelo nessa época do ano, sou um autor sim – de carne, osso, palavra e possíveis pontos finais. Quem duvidar que me visite ou me convide pra não fazer nada. Assim até minha barriga se torna mais real nessa protuberância de jundiá que me legam os vinte seis anos que conto.

Mas se escrever coça, viver arde. E se viver arde, devo dizer que possivelmente vivemos chorando por aí. Mas talvez hoje eu diga isso porque me sinto uma ameba semi-pensante com a pressão lá no dedão do pé. Tudo bem. De deselegante, minha cara de alemão agringado que sofre com a testa empapada de suor basta. Conseqüentemente, nenhum Bilac me encarnaria agora, com raiva dessas festanças de fim de ano e louco pra que o inverno chegue de uma vez.

Falando nisso, desvelo uma tese: gaúcho não suporta o calor. Quem sabe seja um erro universalizar isso, mas não me importo. Gaúcho não suporta o calor porque até tomar chimarrão sua. Gaúcho não suporta o calor porque é ótimo se gabar que temos um inverno europeu por aqui, ainda que várias vezes faça um frio de renguear cusco. Por essas e outras que quero junho, julho e agosto novamente. Quero que esses meses, se não me trouxerem algo útil, ao menos me façam consumir os melhores vinhos possíveis. Com eles virá o Baudelaire, o Rimbaud, aquele pessoal brasileiro que dizem ser ultra-romântico e tudo o que pode estar nessa leva. Só assim entenderei essas senhoras que saem no centro com guarda-chuva preto pra tapar a moleira do sol da Marquês.

Convenhamos que é muito mais elegante usar camisa e blazer do que ficar torrando nesse verão. Por isso só sou o Eduardo no inverno. Esse sujeito que agora está se passando por mim, é um simulacro. Se copiaram de maneira chula o Platão lá no “Matrix”, que dirá eu no verão de Santo Ângelo. O calor derrete até as sombras. E é impossível haver sinceridade com tanta pele exposta. Ser sincero exige recato. Ou no mínimo uma boa dose de compostura, algo impossível nesse mormaço. O objetivo agora é só um: sobreviver até o inverno. Nada mais. Mesmo assim, um ótimo 2011 aos meus poucos leitores, ainda que eu jamais saiba ao certo o que quer dizer esse “ótimo” e quanto mais o que diz esse “2011” – e dos leitores, então, o que sei?! De certa, só minha preguiça de dezembro – talvez um bom auspício para o ano que virá. “C’est la vie”, como dizem os franceses com aquela adorável petulância. Era isso, meu povo.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Desintitulado n° 18.

A dúvida é a ausência da cachaça.

P.S.: E o tal Blogspot insiste em publicar minhas coisas com essa letra miúda. Toda tecnologia é mística. Como um ateu resolverá seu problema?

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

NEGAÇÃO, VIOLÊNCIA E JUSTIÇA.

Somos quem negamos ser. Nossas resignações nos denunciam. O sujeito moralista ao extremo carrega uma imoralidade latente que dá impulso ao seu senso moral. O partido esquerdista radical estrutura seu pensamento por meio de uma construção sólida que não dá margem à liberdade distante dos seus alicerces. Quando falamos e sem querer posicionamos palavras indesejáveis durante a fala, essas palavras expressam o próprio sentido do discurso, ainda que contraditórias em relação àquilo que desejaríamos expressar.

Certos posicionamentos que hoje se querem jurídicos são bons exemplos disso. Em princípio o Direito existe para ordenar a sociedade, legitimado por um aparato estatal sob o primado da vontade popular. Essa vontade é expressa por meio do voto, o qual dá poder aos representantes do povo para analisar e aprovar leis que por sua vez irão ordenar a sociedade. Atualmente, vê-se um apelo popular imenso que clama por leis mais duras ou ao menos interpretações mais duras das leis vigentes quanto a determinados crimes. Vive-se na crença de que a pena extinguiria a possibilidade de um novo crime, de modo que assim a ordem social pudesse ser minimamente estabelecida.

Essa postura traz consigo o discurso da negação da violência. Quanto mais violência se vê, menos violência se quer. Daí surgem os partidários da criminalização de usuários de drogas e mesmo da legalização da pena de morte. Acontece que esse teor legal que brota desses apelos sociais, igualmente carrega a violência em suas linhas. Procura-se negar a violência pela violência, escondendo essa verdade por meio de um discurso que visa a paz. Quer-se curar o sintoma com o sintoma, não sendo buscada a origem da doença que ocasionou o sintoma.

A glamourização do Estado vista nas últimas semanas em razão da invasão do Complexo do Alemão é uma prova disso. Parece que a realidade que estamos vendo jamais existiu e que somente agora veio à tona. Não se pode negar que o tráfico de drogas se encontra a tal ponto entranhado na realidade brasileira que ações como aquelas tomadas pela Polícia e pelas Forças Armadas se fazem necessárias mediante alguns contextos. Ocorre que analisar esse fenômeno de forma rasa implica em negar, por exemplo, que ele apenas se deu como maneira de publicizar a imagem de que o Brasil é um país preparado para receber eventos globais como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Ou seja: trata-se a violência através da violência com o objetivo de propagar a paz ou ao menos a sensação de paz.

O maior problema existente na sociedade quando se trata da ilegalidade e dos seus sintomas sociais, é a tolerância que aos poucos desenvolvemos diante da ilegalidade. O jogo do bicho, embora ilegal, detém bancas de apostas por todos os lados. Beber e dirigir, igualmente ilegal, é prática tolerada universalmente. Há um nível de tolerância que prejudica a efetivação das pretensões de ordem social que desejamos, fazendo com que nossas percepções, atreladas a um senso comum orgiástico, fechem suas portas para uma análise profunda da realidade, a qual deveria se concentrar na origem do sintoma e não apenas no sintoma.

Freud fala que o sonho é um apanhado de significantes que esconde um significado. Isso implica em dizer que a origem dos sonhos se encontra embrenhada no teor complexo do próprio sonho. Interpretar os sonhos não está para buscar um significado místico para aquilo que sonhamos, mas se relaciona com a busca de uma verdade do sujeito, a qual é negada pelo sujeito e por isso se encontra coberta por tantas imagens aparentemente sem lógica, obedecendo às tramas de uma determinada estrutura que por fim revela aquele que sonha.

No panorama social atual, talvez devêssemos fazer o mesmo. Em meio a tanto alarde midiático acerca da violência, a qual nos propicia um gozo que não queremos aceitar e por isso queremos repreender com mais violência, o que explica o apelo social por leis duras ou ao menos interpretações restritas da própria legislação, existe um significado que está nos escapando. Esse significado recalcado denuncia aqueles que somos e esconde o fato de que gostamos de ver o caos social para perceber que nossas vidas, apesar de repletas de problemas, ainda detém a mínima paz. Talvez o reconhecimento dessa realidade propicie o nascimento de algum senso de justiça que não esteja travestido de vingança.

Certamente a angústia gerada por essa consciência não é pouca, manifestando-se no momento em que nos encontramos desprendidos de um significado que até então era certo e objetivo, mas agora se encontra envolto em mil questionamentos. Mas o reconhecimento do fato de sermos quem negamos ser, pode gerar uma revolução na própria percepção que temos da realidade, fazendo com que nossos pensamentos, antes de tirar conclusões precipitadas, saibam analisar o contexto no qual se deram para enfim atingir algum patamar confiável. O fator complicador de uma percepção que ande por esse caminho, está para o fato de que até mesmo a confiabilidade desse patamar será questionada com o tempo, denunciando a realidade irrevogável de que nossa única certeza é a dúvida. Mesmo assim, apenas por sobre as ruínas da certeza é que alguma justiça pode ser construída. Negar nossa condição é negar quem somos. Negar quem somos é afirmar aqueles que somos por meio da negação. Se apostarmos que quanto maior a negação maior a violência, não haverá espaço para soluções justas distante do reconhecimento dessa realidade.

Mas o que queremos, afinal?

P.S.: Não consegui configurar isso daqui pra ficar com a mesma fonte das outras postagens. Não sei o que ocorre. Se alguém que me lê sabe, por favor, informe.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O PROGRESSO DA PERMANÊNCIA.

A estrutura latifundiária brasileira pouco se modificou no decorrer de toda história do país. Informações do Censo Agropecuário de 2006 realizado pelo IBGE, demonstram que no Brasil existem cerca de 329 941 393 propriedades rurais, sendo que deste total 7 798 607 tem menos de 10 hectares, 62 893 091 tem entre 10 e 100 hectares, 112 696 478 tem entre 100 e 1000 hectares e 146 553 218 tem mais de 1000 hectares, de onde se vê que propriedades com grandes extensões de terra ocupam mais de 43% da área cultivável do país, restando às pequenas propriedades 2,7% do total. Comparando-se esses dados de 2006 com o Censo Agropecuário realizado em 1985, nota-se que naquele ano havia no Brasil cerca de 374 924 421 propriedades rurais, das quais 9 986 637 tinham menos de 10 hectares, 69 595 161 entre 10 e 100 hectares, 131 432 667 entre 100 e 1000 hectares e 163 940 667 mais de 1000 hectares, do que se percebe que entre 1985 e 2006, as propriedades rurais de grandes extensões reduziram sua área em pouco mais de 10%.

Parece inevitável pensar que diante desses dados o Brasil necessita de uma política séria de Reforma Agrária. Apesar da grande imprensa nacional alardear as ocupações do MST como atos de terrorismo, de maneira alguma, no meu entendimento, essas ações podem ser classificadas como tais. Se o Art. 186 da Constituição fala que a propriedade rural deve velar pela sua função social e o Art. 3°, inciso I, diz que a sociedade brasileira deve ser pautada pela liberdade, pela justiça e pela solidariedade, as ações do MST por meio de ocupações e demais manifestações são plenamente legítimas, isto porque traduzem o apelo a transformações sociais necessárias por meio de reivindicações de um movimento popular.

Mas não se pode negar que muitas vezes existem excessos por parte de alguns integrantes do MST, os quais merecem punição. Também não se pode esquecer do fato de que certas pessoas se agregam ao movimento simplesmente por terem interesse em terras sem jamais ter trabalhado no campo. Mas em um país onde a própria estrutura latifundiária é consequência de séculos de opressão ao pequeno trabalhador rural, o MST se mostra como um movimento democrático e justo pela distribuição de terras e consequente possibilidade de trabalho àqueles que estão à parte da estrutura social brasileira. Se hoje existe um “inchaço” urbano nas médias e grandes cidades do país, o qual encontra a falta de estrutura como uma das suas principais razões devido ao déficit habitacional, a falta de saneamento básico, a insuficiência de vagas de trabalho bem como ao analfabetismo, muito disso é efeito reflexo do fato de que durante o Regime Militar, por exemplo, centenas de famílias foram expropriadas de suas terras em razão de ações unilaterais do Estado, tendo de se dirigir para os grandes centros em busca de trabalho e sobrevivência. Uma das consequências sociais disso está na crescente criminalidade nas cidades brasileiras.

Quando todo esse cenário brevemente traçado é somado ao fato de que o Censo Agropecuário de 2006 também revelou que mesmo ocupando um total de 24,35% da área cultivável do país, a agricultura familiar responde por 38% do valor bruto da produção brasileira – o que significa que nessas terras são cultivados 1/3 de tudo o que é produzido no Brasil, mesmo que elas ocupem menos de 1/4 da área destinada para a produção agrícola do país –, a necessidade da Reforma Agrária parece ser ainda mais urgente, já que demonstra o importante papel ocupado pelas pequenas propriedades no cenário nacional, o qual certamente contribuiu para os recordes de produção no campo atingidos nos últimos anos pelo Brasil. Com certeza um movimento de massa como o MST traz consigo problemas que se encontram também em todas as camadas sociais brasileiras, como a violência irracional e o apadrinhamento de certos partidos e políticos em busca de votos nas eleições. Mas sonegar sua vital importância democrática é sacrificar a própria possibilidade de transformação social em prol de uma ideologia secular que faz toda lei sucumbir diante de interesses privados.

Como disse Luis Fernando Veríssimo, desde a saída da primeira missa do Brasil todos são a favor da Reforma Agrária, só que dentro da lei. O que acontece é que apesar da Constituição Federal proporcionar vislumbres do Paraíso com “justiça”, “liberdade”, “solidariedade” e “função social”, não diz dos meios de alcançá-lo, papel este que deveria ser assumido pela legislação infraconstitucional. Mas quando essa legislação se perde em labirintos legais que proporcionam reducionismos canhestros por parte do Judiciário, o que permanece é uma interpretação hegemonicamente hipócrita da sociedade brasileira diante desse assunto. Se Canudos foi destruída legalmente no início do século passado pelas tropas federais, sendo que hoje essa ação é vista com repudia, é possível que as próximas gerações enxerguem com a mesma repudia o atual pensamento brasileiro dominante sobre a Reforma Agrária. O que fica é uma apatia cômoda fundada em uma cultura plena de um individualismo patrimonialista que favorece sempre os detentores do poder econômico e político. Se a única Reforma Agrária efetiva que ocorreu no país foram as Capitanias Hereditárias distribuídas entre os invasores europeus, pouco importa. Se prevalecem as grandes propriedades de terra nas mãos de poucas pessoas e empresas, mais interessante é esquecer disso.

No Brasil o que vale é o progresso da permanência.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Desintitulado n° 17.

O marasmo pós-eleições é tremendo. Não senti ímpetos de ânimo em ninguém. Alguns exaltados com certeza existem. Mas nenhum bateu nos meus ouvidos. Parece que um senso de continuísmo afetou todos. O que não é necessariamente ruim. Mas convenhamos que a escassez de novidades dá sono. Se pelo menos o Plínio fosse eleito, sentiríamos menos essa ressaca que não deixa qualquer teor etílico pelo fígado, mas amansa nossa coragem e a torna tão dócil quanto um dálmata domingo de manhã. Ser brasileiro é tomar cerveja sem álcool e fingir um porre que não existe.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Desintitulado n° 15.

Nem todas as estrelas são reais. Algumas são cristais de gelo colados no engano do céu. Essa é a razão das geadas.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Desintitulado n° 13.

Só um homem sabe como uma mulher deve agir. Mas nenhum homem sabe como uma mulher agirá. Por isso os homens costumam inventar as mulheres que amam. É a prova da imperfeição do Universo. Somente assim há criação e vida. Talvez seja um truque para suportarmos a existência. Todo "eu te amo" é um "você falhou" jogado no espelho. Mas não há reflexo em salas escuras. Essa é a origem da beleza.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Jam n° 2.

Destruir. Destituir. Desalocar. Tirar o centro do mundo. Fazer com que aquele sol, aquele sal, aquele gosto de água descolorida, tenha sua voz no céu enquanto mar, enquanto suspensão, areia que entra pelas narinas e despovoa as coisas da sua opacidade, do seu frêmito de não-sentido, legando luzes, danças, balés de cores rubras, gargânteas, afinadas com o som agudo dos gritos da África, da explosão das metástases, da fome em todo sexo, em toda roda, em tudo aquilo que faz a cidade respirar, que chupa água da cafeteira e vomita suco de planta na minha xícara, trazendo o torrão branco que alguma mão de Gullar colheu sem que jamais saiba da sua procedência, do fogo que lhe tocou, dos olhos ardidos pela fumaça, dos galos que ouviu enquanto eu ia dormir e ela, em sua condição de mão, acordava para as lâminas e para o salário que mal durava cinco dias. Altruísmo. Vergonha. Imensidão. Vazio vazio. O sonho tem sua própria métrica. O sonho é o único direito justo a ser defendido, disse Glauber. Longe dele há a mansidão da razão ou o revolutear da desrazão, da insanidade que move as massas em alguma direção incerta, cabildo e redução.

domingo, 7 de novembro de 2010

Jam n° 1.

Não existem avenidas aos meus pés.
Existem faces que desfiguram a profusão das ressacas,
das ondas abanando o amanhã em cada aresta de pedra,
confundindo ontens ressequidos de orquídeas
apenas porque o roxo é a cor dos cadáveres
e das flores que te dei naquela manhã de outono.

Vês o que fizeste de mim? Sou um papel sem valor.
Sou o rosto envelhecendo aos poucos nas prateleiras das repartições,
enegrecido pelo carimbo bem-vindo de algum advogado,
de algum contador que porventura queira o número da minha matrícula no trabalho,
do meu RG e CPF, e, se calhar, também do CNPJ
daquele negócio que abri e que não deu certo
porque não era para dar certo,
enquanto os sóis do Universo giram sua rosa despedaçada,
sua ciranda elétrica e sem propósito,
e eu, se a noite desejar, apenas deito aos 25° graus dessa quinta-feira,
inerte de mim e de tudo,
querendo que o mar longínquo seja mais que miragem,
mas não tendo ao redor nada além do suspiro inconfundível
da falta de sentido de um anseio,
de uma lágrima,
de um rancor para consigo que não passa de medo do mundo,
de rádio que conta histórias para crianças
e explicações que nada explicam afora seu egoísmo.

Parti-me em dois, em três, em mil,
e quando dei para juntar as partes
e enfim compor um espelho,
era tarde demais.

Sobraram réstias de sol na sala,
paredes ventiladas de prosopopéias e versos interrompidos.
Uma angústia latente querendo ser peito
e as coisas sem nexo daquilo que sou revolvendo meu estômago,
meus pulmões,
meu sexo prenhe de vidas que não serão.

Não acredito em Heidegger e muito menos em Strauss.
O incesto é a razão de ser.
A interdição não é natural.
As coisas não são as coisas fora do olhar que pousamos nelas:
e o olhar esvai ao primeiro toque
e ao primeiro amor adolescente
que borda poemas nos meus pêlos de dez anos atrás.

Hoje, aos vinte e seis, magro como não deveria,
olhar entre a calma e o desespero,
solfejo enciclopédias
e escrevo meu epitáfio como quem toca um oboé sem jamais ter visto um oboé,
mas ainda assim deseja uma linha de sax em noites de New Jersey.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Desintitulado n° 11.

Quando crianças, queremos ser jogador de futebol. Quando adultos, queremos ganhar na loteria. Esses são nossos principais sonhos. Mas entre a impossibilidade da realização de um e outro, é que construímos nossa vida. O grau de sucesso que obtemos é medido pela aproximação com um desses limites. E quem negar é a mulher do padre. Ou seja: a vagabunda da vizinhança. Mas nem por isso pouco bondosa. Afinal, a imoralidade é a razão da felicidade. E a ignorância é sua mãe. Ninguém pode ser feliz abertamente. É pecado.

domingo, 31 de outubro de 2010

Desintitulado n° 10.

Se um assassino queima na cadeira elétrica, é justiça. Se um fazendeiro mata ladrões de galinha, é defesa do patrimônio. Mas se alguém se arrisca a dizer a verdade, é burrice. A mentira é o coração do afeto e o motivo dos tapinhas nas costas. Quando muito, de animadas reuniões dançantes e almoços de gente importante. Tanto em um quanto em outro lugar, a conversa é impossível. Nessas circunstâncias, a boca foi feita para outras coisas. E nem todas tem relação com a comida.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Desintitulado n° 9.

Um necrófilo e um suicida são potencialmente iguais. Perderam a paciência. No meio termo existe a política e a religião. Se uma oferece a salvação pela palavra, outra oferece a salvação pelo silêncio. Mas ninguém explica do que precisamos nos salvar.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Desintitulado n° 8.

Nem só de sexo e dinheiro vive o homem. Sacanagem também é essencial. A democracia surgiu dessa constatação. Mas os homens de bem logo inventaram a ditadura.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Desintitulado nº 7.

Senso comum:
A festa está na bunda assim como a bunda está na festa.

À parte primeiro:
Quem faz a festa?

À parte segundo:
De quem é a bunda?

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Desintitulado nº 6.

O auge da solidariedade humana é a divisão de uma cerveja com um desconhecido em qualquer mesa de bar. Como no Brasil existe um bar em cada esquina, somos um povo extremamente solidário.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Desintitulado nº 5.

Cidadão é quem traz na cabeça a Coroa do Voto. Na época de eleição, é quem é abraçado por políticos, ganha cestas básicas, contas de água e luz pagas e alguns favores ao deus-dará das vaidades. Cidadão é aquele que no seu município, não vota nos vereadores porque vê nas suas idéias algo que enfim possa mudar sua cidade. Cidadão é quem vota nos vereadores porque têm a expectativa de que esses vereadores possam, junto ao prefeito, conseguir alguns outros favores para ele. No Brasil, urna e cidadão são equivalentes. Esperar mais que isso seria pedir demais. O nome secreto da Constituição é Continuidade. Ou algo impublicável.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

OROBORO DE COBRA CORAL.

Não me impressionou o resultado das eleições. Fiquei entediado. Nada de novo no front. Brasil é Brasil. Lógica autofágica. Cobra que devora o rabo. Ali se encontra nossa história. Mito que tem um pai como centro. Pai que sabe quem são seus filhos. Mas esconde grana no colchão. Libera uns trocados pros rebentos não berrarem. O direito se confunde com caridade.

Poucos percebem o atoleiro.

Talvez por isso sejamos o país da gambiarra. Ou o país mais imoral do mundo. Nosso governo reflete relações familiares. Temos de fazer parte da irmandade pra ter direito a ter direitos. Isso só aumentou nos últimos anos. O Bolsa Família, por exemplo, não quer dar condições pras pessoas serem mais livres. Pretende dar poder de compra às pessoas. Não é algo ruim. Sou a favor. Mas demonstra que a liberdade atual é medida em cifrões. Quanto mais podemos comprar, mais livres somos. Somos irmãos na fidelidade dos créditos. O cidadão contemporâneo é o consumidor contemporâneo. O Estado fomenta instrumentos pro consumo.

A justiça é pesada com cestas básicas.

Isso esteve no discurso dos candidatos. Falou-se de segurança. Pra consumir tranquilamente. Falou-se de educação. Pra consumir mais e melhor. Falou-se de saúde. Como quem fala de um carro na oficina. Tornamo-nos máquinas que vivem pra consumir. Consumimos a vida no ato da compra. O espelho das nossas existências é a fatura dos cartões. Um futuro realmente livre está cada vez mais distante. Liberdade implica em afirmação. Não em negação. Liberdade está para igualdade. Mas uma igualdade baseada na compra não é igualitária. Sua medida é o poder aquisitivo. Não o desenvolvimento humano. Nega pra afirmar. Pauta-se em porcentagens. Não em vidas.

Achamos que bonsais dão frutos se feitos de puro plástico.

A religião poderia libertar. Mas Deus foi tomado dos pobres e aprisionado em palácios de mármore. Perdeu sua razão de ser. Há séculos a religião deixou de ser um instrumento de lutas. Virou calmante. Figuras como Cristo ou Buda são vendidas com ares de Dale Carnegie. Esqueceu-se do caráter revolucionário da crença. Ela foi substituída por anestésicos que nos consolam quando o salário acaba. Ou quando perdemos algum parente. A religião vedou sua porta pra liberdade. Tornou-se goteira pra prisão. Serve de marionete pro lucro.

O ouro substituiu a fé do mesmo modo que o brilho vale mais que a luz.

A liberdade plena é a ausência de corpo, diz Artaud. Desprovidos dos nossos apetrechos de bicho, podemos ser completamente livres. É uma provocação. Não significa que não devemos lutar por liberdade. Mas que devemos buscar uma liberdade sempre por vir. O além da vida só é além na vida. Só existem espíritos de carne e osso. Isso passa pela construção de uma identidade apegada à igualdade. Respeitosa quanto à diferença. Mas no Brasil nossa identidade se resume ao futebol e ao carnaval. Nossas lutas se restringem aos estádios e nossa felicidade a uma liberdade velada em fevereiro ou março. Essa identidade prende nossas possibilidades de mudança em uma sociedade na qual a família não é a célula do Estado, mas o reflexo microscópico do jogo de favorecimentos que é o Estado. A imagem de um pai caridoso quando convém e não justo como deveria ser.

Direito virou esmola – e não foi sempre assim?

As eleições de domingo confirmaram a regra. Não aconteceu nada de novo. Se o Brasil fosse um Estado suficientemente forte, não haveria razão pra tanto alarde. Mas quem entra na gestão estatal muda a atitude do Estado. O tendéu se justifica. O que está em jogo é a possibilidade de novos favorecidos e novos facilitadores ao favorecimento. Desde sempre foi assim. Não vejo futuro próximo distante desse padrão. Muita coisa melhorou nos últimos anos. Não se pode negar. Mas a única possibilidade real de mudança residiria em uma atitude do povo brasileiro que estivesse não apenas presa às discussões de mesa de bar. Precisamos de ações concretas que visem mudança a partir da construção de uma identidade que se reconheça com a liberdade e a igualdade. Então haverá espaço à fraternidade e à diferença.

Algo extremamente difícil quando a medida do cidadão é sua conta bancária.

O brasileiro tem medo de ser livre. O mundo caminha contra a liberdade. Restou a disciplina da compra. O vazio é a consumação do consumo. Não precisamos de exorcismo. Precisamos de análise. Problema é que nem Freud explica quando revoluções viram misticismos. A história não acabou. Acabamos com a história. Restaram umbigos. A serpente devorou o rabo. Teve uma congestão. Oroboro de cobra coral. Veneno que é alimento. O resultado somos nós. Minha esperança é a consciência disso.

Mas quem arrisca?

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Desintitulado nº 4.

A democracia é o mais belo dos sistemas políticos. Por isso é também o mais sacana. Baseia-se em uma pretensão de objetividade completamente falsa. A política, por outro lado, serve para deixar o povo alarmado, clamando por segurança. É o leão-de-chácara do bordel. Isso prova que é impossível ser democrata sendo sinceramente democrata.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Desintitulado nº 3.

Todo extremismo é desprovido de neurônios, mas traz consigo uma verdade incontestável que certamente é invisível para a maioria. O problema é que no Brasil não existe esquerda, direita ou centro. A posição preferida de todos lembra um frango assado besuntado em vaselina.

sábado, 25 de setembro de 2010

Desintitulado nº 2.

O brasileiro é uma prostituta histórica. Começou sua senda de clientela caloteira com o pessoal da Europa vindo pra cá e fazendo filhos nas boas selvagens de Rousseau. Desses filhos nasceu o protótipo do cidadão brasileiro: passivo, alegre e sempre disposto a passar a perna em quem aparecer pela frente (detentor daquele sorriso desdentado que pode até causar alguma piedade ou admiração ao primeiro olhar, mas que, com um pouquinho mais de observação, causa a simples vontade de estar distante dos seus braços, seja pelo odor moral ou pela inexistência de desodorante nas axilas).

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Desintitulado nº 1.

Existe uma diferença básica entre a ditadura e a democracia. Na primeira você não escolhe o parceiro. Mas sabe que ele pode chamar você para a cama no horário que bem entender, utilizando inclusive uns apetrechos que ganhou da CIA. Na segunda você não sabe quem é seu parceiro. As coisas acontecem tão às claras que ninguém sabe se é cego ou carrega uma fluorescente pendurada na testa. Por isso a democracia é essencialmente bissexual, apesar de alguns dizerem que sua principal característica é a dor lombar após os pronunciamentos oficiais na televisão. Ficar de quatro cansa.

sábado, 18 de setembro de 2010

EM RITMO DE FESTA!

Sou um entusiasta da política. Brigo com quem disser que todos os políticos são bandidos e que ninguém presta. Sou capaz de argumentar por horas não pra defender um partido ou coisa parecida, mas pra dizer que parlamentarismo seria melhor opção política pro Brasil que presidencialismo, por exemplo. Mas diante das coisas que tenho visto no horário eleitoral, ao qual tenho me dado ao trabalho de assistir quando posso, chego apenas a uma conclusão: estamos mal de candidatos.

Se fosse só pra deputado estadual ou federal, o problema não seria grande. Além do mais, grande parte deles chega a ser mais engraçado que qualquer coisa. Tem um candidato a senador que inclusive, querendo dar uma de Fred da novela das oito, chega a defender o fim do Senado. O que até é legal, convenhamos. Mas acontece que nossa maleza vai desses deputáveis aos presidenciáveis. A coisa está feia. Tão feia que me lembra aquele poema do Fernando Pessoa: “tinto ou branco, é tudo igual: é para vomitar”.

Mas calma lá. A gente é brasileiro. Está acostumado a rir do próprio fato de ser brasileiro. A piada é nossa existência. Não fosse assim, já seríamos uma Finlândia em suicídios. Existem alguns que chegam a dizer que isso faz com que compreendamos melhor quem somos. E apesar de eu achar que riso demais é desespero, não custa nada, nem que seja pra relaxar ou talvez entender melhor nossas principais opções presidenciáveis, perceber algumas coisas. Quais? Vamos lá.

Vejamos o Serra. Quem já assistiu aos Simpsons, sabe exatamente do que estou falando. Não que ele seja um muquirana com olhos vidrados que nem o Mr. Burnes. Mas que ele parece o Mr. Burnes depois da quimioterapia, parece. Poderia até ganhar uma grana fazendo umas pontas em festas infantis. Ou quem sabe no Dia das Bruxas, onde as orelhas do Nosferatu daquele filme do Murnau de 1922 lhe cairiam perfeitamente. É aterrorizante. Haja hipocondria pra uma carcaça daquelas. Talvez seja a razão dos genéricos e da extinção dos tucanos vaselinados.

Já a Dilma é uma criatura mais assustadora: parece Chuck, o Boneco Assassino. O fato do Chuck ser vendido em uma caixinha limpinha com ares de bom moço que fará tudo de bom pela criançada, é mera coincidência. Mas que o Chuck, com aquelas bochechas reluzentes de botox, é a cara da Dilma, é sim. Ou seria ela uma espécie de Cauby Peixoto pós-guerrilheiro, ser híbrido que trocou os gorros do Che pelas bolsas da Prada? Acho que a resposta é questão de gosto, nem que seja pela curra.

A Marina, coitada, está mais pra uma Na'vi desnutrida do Avatar. Até seus olhos são meio pra cima! Quem quiser maliciar com ela, capaz de dizer que é de tanto comer alface. Afinal, ela é dos verdes. Mas se a questão for magreza, melhor mesmo seria dar pra Marina o título de mãe da Noiva Cadáver, aquela mocinha do desenho do Tim Burton. Acredito que nenhuma descrição diga mais sobre tudo o que ela representa. Vender comodities de carbono e falar que isso é pra defender a natureza, é o mesmo que sustentar que o ar seria “mais respirável” se feito unicamente de nicotina e alcatrão.

E o Plínio? Complicado. Ele certamente parece alguém que deve ter sido há sabe lá quantas décadas. Quem sabe um César do Império Romano. Se o Paulo Coelho estiver certo quanto à existência dos duendes, o Plínio é um duende velho. Ou um Smurf revoltado. Mas diante das suas alfinetadas estético-discursivas nos debates, ele está mais pro Cérebro do Pinky, ranzinza e verborrágico noite após noite. Jamais irá dominar o mundo. Muito menos os latifúndios hereditários. A chave não é Chávez.

Ficou claro o que disse? Se não, basta perguntar pro Google. É a Biblioteca de Babel borgiana ao alcance da preguiça. Mas se persistem dúvidas quanto ao nosso estado de maleza política, elas também podem ser sanadas com a simples conclusão de que estamos entre eleger pra presidente um vampiro que tem por mestre um sapo sociólogo comedor de celulares, ou uma boneca andrógina que tem por guru uma cruza do Mestre Yoda com um hipotético Qcorpo Santo civilizado, calmo pela cachaça de alguns comparsas de cama e mesa.

Mas como diz o Humbertão naquela música que eu tocava quando tinha dezesseis: “Hey, mãe! Já não esquento a cabeça!”. Simplesmente deixo estar. Em alguns lances, confesso que faço o possível pra que um chute daqueles faça a bola furar em algum palanque. Daí o jogo pararia e as regras mudariam. Mas é só sonho: haveria um juiz pra me atazanar a vida. Por essas e outras que concordo com quem diz que rir faz com que compreendamos melhor quem somos. Acabei de perceber, por exemplo, que como toda gente passei a vida esperando os aviõezinhos do Silvio Santos. Em ritmo de festa! Sou de uma raça que tem a barriga cheia de fome pelo mundo que o mundo não nos deu porque não tivemos coragem de insistir. O que nos faltou? Ter mais que colhões: ter peito.

Mas é melhor que nada isso que está aí, ainda que meus três-quatro leitores sejam gremistas como eu. “Valha-me Deus!”, como diria um velho amigo de Portugal.