A
recorrência do termo “globalização” na atualidade diz de um novo modelo social,
econômico, político e cultural que emaranha o planeta. Inicialmente tida apenas
em sua abrangência econômica, designando principalmente a tendência neoliberal
surgida nas décadas de 1970 e 1980,
a globalização contemporânea se desdobra, segundo René Armand Dreifuss, em dois outros termos:
“planetarização” e “mundialização”. Se a planetarização indica os fenômenos
políticos que aos poucos deslocam as decisões costumeiramente tidas no âmbito
do Estado-Nação, a mundialização aponta para os aspectos culturais e suas
conseqüências planetárias, considerando-se que jamais na história o diálogo
intercultural foi tão alavancado em função do extremo desenvolvimento das
tecnologias de transporte e das telecomunicações.
Tendo-se por base o espectro proporcionado pela mundialização,
pode-se referir que o diálogo entre culturas diversas detêm uma sintomática
ampla. Se ocorrem aproximações e influências recíprocas, também ocorrem
repúdios e sectarismos baseados na defesa de identidades culturais que não
conseguem conviver com a multiplicidade identitária de um mundo em constante
entrelaçamento. Como essas identidades, consoante Alejandro Serrano Caldera,
sempre se referem à cultura como conjunto de reflexões, ações, criações e
tradições que envolvem realidades e perspectivas de comunidades humanas
determinadas, pode se instalar uma crise que se reflete na ruptura dos referentes
habituais de uma sociedade e de uma época, redimensionando valores e crenças e
promovendo aproximações, afastamentos e hibridizações culturais.
Talvez o grupo que melhor demonstre esse processo de hibridização
cultural no Rio Grande do Sul seja o Tambo do Bando. Em 1990, com o disco
“Ingênuos Malditos”, o Tambo do Bando revolucionou a música gaúcha ao unir
sonoridades e linguagens universais à temática nativista, ajustando o
surgimento de uma obra cuja inovação estética ainda se encontra na vanguarda de
tudo quanto foi produzido musicalmente no estado nos últimos vinte anos. As
letras do santo-angelense Luiz Sérgio Metz, o “Jacaré”, falecido precocemente
em 1996, contrapunham o estereótipo gauchesco disseminado pelo tradicionalismo,
tratando de dilemas existenciais e de temáticas sociais a partir de um mix
entre nativismo, rock e MPB. A formação original, composta por Beto Bolo,
Leandro Cachoeira, Marcelo Lehmann, Texo Cabral e Vinícius Brum, trouxe aos
palcos arranjos e melodias que não se enquadravam nos conceitos conservadores
reproduzidos nos festivais – tratando-se mesmo assim de música regional.
Enquanto alguns setores do tradicionalismo gaúcho se retraíam
frente às possibilidades de hibridização cultural proporcionadas por um cenário
de intensa troca entre local e global, o Tambo do Bando, seguido por artistas
do porte de Vitor Ramil e Bebeto Alves, produziu uma sonoridade inovadora a
partir da fusão da singularidade regionalista com uma universalidade provinda do
câmbio intercultural. Longe de sonegar suas origens, o grupo reagiu
criativamente às novas demandas de um mercado cultural cada vez mais
homogeneizado, o que resultou no nascimento de uma estética revolucionária que
possibilitou e possibilita um pensamento diferenciado sobre o “ser sulino” na
contemporaneidade. Artistas como o argentino Atahualpa Yupanqui e o
uruguaio Jorge Drexler, possivelmente também reflitam esse ímpeto reacionário e
atento ao horizonte presente que se expressa no trabalho do Tambo do Bando.
É interessante, diante desse cenário, lembrar que parece nítido o
interesse da juventude pela música regional. Prova desse interesse foi a
recente apresentação que César Oliveira & Rogério Melo fizeram em Santo Ângelo. Músicos
e letristas da nova geração surgem todos os dias, dando continuidade ao
trabalho iniciado por Paixão
Côrtes, Barbosa Lessa e Glauco Saraiva há mais
de sessenta anos. Mas ao passo que a perspectiva da impossibilidade da
decadência do tradicionalismo sul-rio-grandense parece clara, surgem também
guetos de sentido conservadores que normalmente são encabeçados por políticas
provindas do MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho) e aceitas sem maiores
contestações pela comunidade cultural gaúcha. Além disso, os festivais realizados
no estado permanecem em sua maioria presos a estereótipos estéticos que ao
invés de possibilitar o desenvolvimento e o arrojo musicais, trancafiam a
possibilidade de inovação em moldes míticos e ultrapassados, os quais pouco ou
nada têm a ver com o reflexo do tradicionalismo na sociedade.
Como a mundialização das trocas culturais causa desconforto e
angústia, já que instala uma crise com relação aos referentes habituais que
constituem a identidade cultural de um povo, isso não precisa ser visto
unicamente como um fenômeno maléfico ao ponto de suscitar um retraimento
sectário que de modo algum surtirá um efeito benéfico. Claro que a preservação
do patrimônio cultural expresso pelo tradicionalismo é importantíssima, mas
pensar uma cultura como um sistema fechado é algo totalmente ilógico que pode
desandar em sectarismos raivosos quanto às possibilidades de mudança impulsionadas
pela contemporaneidade. Remontando mesmo ao “Manifesto Antropofágico” de Oswald
de Andrade, a obra do Tambo do Bando diz de uma aspiração clara e possível
quanto à convivência entre o regional e o universal.
Caso o poeta americano Erza Pound esteja certo ao afirmar que
“os artistas são as antenas da raça”, mais certo está o poeta “Jacaré” no
seguinte trecho da canção “Um pombo larga o pago”: “Um pombo larga o pago pra que ele volte vago / Ambos alados, lado a
lado, separados / Se Tolstói ao pensar nisso estava referindo uma biboca tal / Certamente
estava à frente, bem à frente de algo maternal / Ao passar por linhas
carreteiras a seguinte solução final: ‘Canta tua aldeia e serás universal’ /
Que a querência, por extrema, nunca sai do coração”. Se Bob Dylan canta a
liberdade da alma americana, precedido obviamente por Walt Whitman, se Jorge
Luis Borges escreve sobre o infinito que exala da sensação que se têm ao
vislumbrar os pampas, antecipando modernas teorias sobre a mecânica quântica,
como refere Alberto Rojo, um pensamento que se queira contemporâneo quanto ao “ser
sulino” deve se dar na intersecção da identidade sul-rio-grandense com a
alteridade das vozes que vêm de fora, internalizadas por uma estética que
expresse essa hibridização. São por esses e tantos outros fatores que a obra do
Tambo do Bando permanece atual e vanguardista mais de vinte anos após o
lançamento de “Ingênuos Malditos”.