domingo, 30 de janeiro de 2011

EM NOME DE DEUS (REMAKE).

A Bíblia está recheada de passagens interessantes e bizarras que tem a pretensão de ensinar uma espécie de moralidade aos fiéis. Essa moralidade, porém, ao menos no Antigo Testamento, ensina coisas no mínimo desaconselháveis a qualquer padrão que se considere aceitável nos dias atuais. Claro que podemos associar isso à antiguidade das Escrituras, como muitos dizem, já que elas representam a cultura de determinadas épocas. Mas quando penso que certas pessoas levam a palavra da Bíblia ao pé da letra e que essa palavra levada ao pé da letra muitas vezes é ensinada às crianças, começo a ficar apavorado.

Uma das passagens que chama atenção e que serve de exemplo para o que estou falando, diz da destruição de Sodoma e Gomorra. Situada no Gênesis, fala que Javé, irritado com essas duas cidades, resolveu destruir o mundo com um imenso Dilúvio. Mas em Sodoma um homem e sua família poderiam se salvar. Este homem era Lot, sobrinho de Abraão, o único sujeito de bem dali. Então Javé enviou dois anjos para informar Lot que deveria sair da cidade antes que ela fosse consumida pelo enxofre, pois antes da água viria o fogo. Lot recebeu os anjos com extrema hospitalidade, ao que os homens de Sodoma cercaram sua casa e começaram a bradar: “Onde estão os homens que vieram à tua casa ao cair da noite? Traze-os para fora, para que deles abusemos” (Gênesis 19, 5).

Lot respondeu: “Eu vos rogo, meus irmãos, não queirais fazer o mal. Tenho duas filhas virgens; eu as vou trazer, e podereis fazer com elas o que bem entenderdes; mas não façais nada a estes homens, porque foram acolhidos à sombra do meu teto” (Gênesis 19, 7-8). Nesse momento, os homens de Sodoma investiram contra Lot, mas os anjos os cegaram e ele pôde fugir com sua família da cidade. Os anjos, contudo, advertiram: “Não olhes para trás, nem fiques parado em lugar algum desta região; foge para os montes a fim não pereceres” (Gênesis 19, 17). O que aconteceu? Lot e suas filhas se salvaram, mas sua mulher foi transformada em um pilar de sal por ter olhado para trás enquanto Sodoma era destruída.

Tempos depois, as duas filhas de Lot reaparecem, mas de uma maneira peculiar. Desejosas de companhia masculina enquanto moravam com o pai em uma caverna no alto de uma montanha, decidem embriagar Lot para transar com ele. Na primeira noite, Lot não percebeu que sua filha mais velha lhe seduzira e a engravidou. Na segunda noite, novamente embriagado, Lot não percebeu que a filha mais nova se achegara dele e também a engravidou (Gênesis 19, 31-36). E esse homem de uma família no mínimo conturbada, que havia oferecido suas filhas ao estupro dos sodomitas, era o único sujeito de bem de Sodoma. Pode? Para certos fiéis, não pode e nem deve: simplesmente é, sendo que o projeto cristão, como falou Lutero, é a substituição da razão pela fé.

Outra passagem interessante que detém relação com Lot e sua família, encontra-se no capítulo 19 do livro dos Juízes. Um levita (ministro de culto) viajava com sua concubina em Jebus, ao que resolveu passar a noite na casa de um velho que lhe acolheu. Enquanto jantavam, os homens da cidade bateram à porta do velho e disseram: “Manda para fora o homem que entrou em tua casa, para que dele abusemos” (Juízes 19, 22). O dono da casa replicou: “Não, meus irmãos, não cometais semelhante mal. (...) Aqui está minha filha virgem. Vou mandá-la sair, podeis violá-la e fazer-lhe o que quiserdes, mas não pratiqueis tal absurdo com este homem” (Juízes 19, 23-24). Acontece que os homens não quiseram ouvir o velho. Foi a vez do levita agarrar sua concubina e a levar para os homens que estavam lá fora, os quais “a violaram e abusaram dela a noite inteira até de madrugada” (Juízes 19, 25). Quando amanheceu, a mulher estava caída à porta da casa. Chegou seu marido e falou: “Levanta-te e vamos” (Juízes 19, 28). Ela não respondeu. O levita então a colocou em cima de um jumento e longe da casa do velho, ao que parece, “tomou um cutelo, pegou o corpo de sua concubina e cortou-o membro por membro em doze partes que enviou por todo território de Israel” (Juízes 19, 29).

Claro que isso não foi à toa. O motivo é que o marido esquartejou a mulher para provocar vingança, a qual causou uma guerra contra a tribo de Benjamin, onde sessenta mil homens foram mortos, praticamente exterminando os benjamitas (responsáveis pelo estupro da mulher do levita), não fosse uma decisão. Qual? Como as mulheres benjamitas haviam sido exterminadas e havia a pretensão de que nenhuma tribo de Israel se extinguisse, uma assembléia de anciões tomou as providências: “Cada ano celebra-se uma festa de Javé em Silo. (...) Ide esconder-vos nas vinhas e olhai bem; quando as jovens de Silo vierem a dançar, saireis das vinhas e cada um tomará uma mulher dentre as jovens de Silo” (Juízes 21, 19-22). Dessa forma, com um estupro coletivo dessa vez consumado, uma mulher cortada em doze pedaços e sessenta mil mortos, além de jovens benjamitas violentadas por homens sedentos por sexo, tudo estava de acordo com a vontade de Javé.

Mas isso não soaria tão estranho se a edição da Bíblia que tenho (Edições Loyola, 1989), comentada no livro dos Juízes pelo Fr. Eurico Peters, não dissesse, em uma nota de rodapé que serve de explicação ao que sucede com a mulher do levita, que “a hospitalidade oriental é um desejo sagrado e um direito humano” (p.251). Que hospitalidade é essa que leva o dono da casa a oferecer sua filha virgem a um bando de estupradores? E que direito humano e desejo divino é esse que permite que um homem entregue sua mulher a esse mesmo bando e, quando a encontra desfalecida depois de uma noite de violências, apenas diz “levanta-te e vamos” (Juízes 19, 28)? Parece que as palavras falam por si dessa santa hospitalidade.

Diante de tudo isso, até entendo uma jovem maranhense que assassinou o pai e a mãe porque eles não quiseram lhe dar dinheiro para cobrir dívidas de dízimo que tinha com a sua igreja evangélica. O fato dessa jovem, Lineusa Rodrigues, ter matado seus pais com pauladas e depois cortado suas mãos com um serrote, também não me espanta. Seu motivo é claro: “Eu fiz por Deus”. E quando determinadas pessoas consideram um livro sagrado ao ponto de jamais contestar o que ele diz, é isso que acontece quando as coisas são levadas às últimas consequências. O desenvolvimento da moralidade humana em nada se relaciona com qualquer senso moral absoluto. Quando penso que passagens como as que comentei podem ser ensinadas às crianças com a intenção de formar sua moralidade a partir de textos considerados sagrados, algo de muito errado está acontecendo. O pé da letra dá um pontapé na razão, com o perdão do trocadilho. Se John Trapp está completamente certo ao dizer que “onde a Bíblia não tem voz, não devemos ter ouvidos”, talvez fosse melhor ser surdo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

UM OUTRO SOL.

Não são necessárias muitas coisas para se viver bem. Precisamos de alimentação, de abrigo contra o frio, de teto nos dias de chuva e de algumas pessoas para amar. Não necessitamos de quinquilharias eletrônicas empilhadas em nossas casas e muito menos de uma conta recheada com valores exorbitantes. Claro que saúde, educação e trabalho dignamente remunerado também são essenciais. Mas qual é o motivo de nos preocuparmos com tantas coisas fúteis para nossa vida se ela pode acabar de uma hora para outra? A noção clara da finitude anula boa parte das aspirações de grande parte das pessoas. Mas o modo como a sociedade se estrutura coibi a sensação da proximidade da morte em prol de um presente eterno sustentado atualmente principalmente pelo consumo.

Na Antiguidade, a morte era algo muito mais presente na vida das pessoas. Os longos rituais fúnebres e a importância da morte para a família antiga são provas disso. Nas sociedades remotas, os entes familiares, quando faleciam, deveriam ser obrigatoriamente cultuados pelos seus descendentes. Tanto é que algumas sociedades arcaicas detinham túmulos coletivos no interior das casas, já que se acreditava que a vida não acabava com a morte, mas continuava no além-túmulo. Para nossos ancestrais, essa vida que permanecia após a morte não se relacionava com a desvinculação da alma do corpo. De outra forma, havia a crença de que corpo e alma não consistiam uma dualidade, mas sim uma unidade. Os mortos permaneciam vivos em um outro mundo debaixo da terra.

Hoje pensar desse modo parece absurdo. A civilização judaico-cristã ocidental está embasada na metempsicose, conceito que diz da separação da alma em relação ao corpo. Frequentemente se afirma que o corpo é uma embalagem que carrega a alma. Fala-se que a carne, imperfeita por essência, é a morada de algo sublime que quando da morte irá se desprender desse abrigo e alçar ao Paraíso ou ao Inferno, tudo dependendo do comportamento do indivíduo quando em vida. Se refletirmos acerca da forma como a maioria das religiões se organiza, veremos que essa dualidade corpo/alma alicerça grande parte das crenças existentes. Independentemente da fé em uma felicidade eterna ou em um martírio infinito, acreditando-se na reencarnação ou na jornada terrena como uma busca pela iluminação da alma, vê-se que não mais persiste na cultura atual a antiga crença da unidade corpo/alma, sendo que o corpo quase sempre é visto como uma imperfeição que carrega a perfeição do espírito.

Ocorre que talvez essa crença na dualidade corpo/alma iniba muitas possibilidades que temos quando vivos. Não é segredo para ninguém que a castração simbólica efetuada por algumas religiões quanto ao impulso sexual das pessoas, deixa marcas indeléveis em seu corpo, por exemplo. Igualmente não é segredo que muitos daqueles que passam a vida temendo os castigos divinos dentro de templos e igrejas, são completamente mesquinhos e egoístas em sua vida social, perseverantes unicamente em sua própria imagem. Mas o problema não é esse. O problema é que quanto mais encobrimos a possibilidade da morte, seja com crenças, compras, rancores ou objetivos profissionais, mais sonegamos a grandiosidade e a beleza da vida que pulsa em nosso corpo enquanto estamos vivos.

Se houvesse a aceitação irrestrita do nosso fim, quem sabe poderíamos enfim agir com respeito uns em relação aos outros. Quem sabe esqueceríamos ninharias e tantos desejos infundados que nos movem como sonâmbulos pelo planeta. Se aceitássemos a fragilidade e a precariedade do momento em que estamos vivos, sem um vislumbre do além, seja ele embaixo da terra, como nas crenças antigas, ou no Paraíso e na Ressurreição, como na concepção cristã, talvez realmente vivêssemos cada instante da existência instigados pelo amor, pela solidariedade e pela convivência harmônica uns com os outros. Se tanto as religiões quanto o consumismo procuram furtar nossa visão da possibilidade de um final irreversível, uma pela crença no além, outro pelo esquecimento da morte, a aceitação do caráter último desse fim poderia injetar em nossas veias um senso completamente diverso do mundo, das pessoas e de nós próprios, dando para a existência não apenas um senso negativo, mas sim um espectro positivo do privilégio que é simplesmente estarmos vivos em um universo tão grandioso como o que habitamos.

Mas essa ética da fatalidade e da irreversibilidade da vida está longe de ser mais que um horizonte. O fato é que as pessoas permanecem apegadas às coisas pequenas justamente para esquecer da possibilidade da morte. Preferimos varrer para o canto mais escuro da nossa consciência a certeza do fim, como quem nega a realidade em um discurso alucinógeno e constrói sua vida a partir de um redemoinho de ilusões. O apego irrestrito à vida é confundido com preguiça para as coisas do mundo, visto como desinteresse pelas convenções tidas como normais e tachado como loucura por aqueles que contam suas horas de vida no ponto de tantas empresas. Esquecemos de abraçar e beijar aqueles que amamos, não lembramos que de algum modo somos seres de uma mesma e antiqüíssima família e passamos pela vida sem dar por conta da beleza que nos espreitou por toda parte.

Com certeza que pensar na mortalidade não é algo agradável. Refletir acerca da possibilidade e da certeza do fim, invariavelmente causa angústia a qualquer pessoa. Quando choramos em tantos velórios no decorrer da vida, choramos pela nossa condição finita além de derramarmos lágrimas por aqueles que amávamos e faleceram. Como diz Gabriel Garcia Marques, o luto é uma raiva cega e sem direção. Porém, a fatalidade da existência não precisa apenas carregar a absurdidade da sua notável falta de sentido, mas pode também trazer a possibilidade de um novo sentido fincado na vida e nada mais. Esse amor pela existência poderia nos libertar de amarras que mais nos atormentam do que nos consolam, fazendo com que o corpo, antes de ser uma embalagem, uma imperfeição que carrega algo eterno, seja a única e verdadeira perfeição que de modo aleatório e desprovido de um planejador, de um arquiteto, deu-nos a possibilidade de trazermos na pele a poeira do cosmo para o qual invariavelmente regressaremos após a morte – mas não como espíritos: apenas como átomos que um dia se transformarão em outros corpos (e talvez em farelo mínimo de um outro sol que iluminará outras vidas).

Mas também é possível que efetivamente nossa vida continue após a morte. Talvez em uma outra dimensão paralela a esta em que vivemos e a qual não conseguimos perceber por mera limitação da consciência, continuemos observando esta vida a partir de uma outra vida da qual não temos a mínima noção. O mistério da existência não se encerra com a certeza do nosso fim. Mas a certeza do nosso fim encerra todo o mistério da existência. Não se trata de crueldade. Trata-se de fatalidade, de irreversibilidade e de inevitável limitação. Quem sabe Deus seja a beleza da incompreensão.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

EM NOME DE DEUS.

A religião é um bom argumento para tudo. Em nome de Deus nada é impossível. Como a fé é uma crença sem evidência, pouco importa a sobriedade do seu discurso. Se um homem-bomba acredita que morrer como mártir garante uma estadia eterna em uma parte especialmente maravilhosa do Paraíso, onde haverão setenta e duas virgens esperando por ele, não se trata de um completo absurdo para a religião, mas de uma visão perfeitamente plausível caso se queira arregimentar devotos para uma determinada crença. Se George W. Bush disse que invadiu o Iraque porque Deus lhe falou para fazer isso, milhares de pessoas acreditaram ou ao menos respeitaram as suas palavras, mesmo que elas desabem ao menor respingo de racionalidade.

A família da antiguidade grego-romana, por exemplo, acreditava que deveria cultuar seus mortos. Muitas casas tinham túmulos no seu interior, onde em determinados períodos do ano eram feitas oferendas aos mortos através de um pequeno buraco que chegava até seus corpos. Essas oferendas iam dos vinhos aos sacrifícios humanos, já que se um homem tinha muitos escravos em vida, era natural que necessitasse desses mesmos escravos depois de morto, o que provocava o assassinato de centenas de pessoas em certas datas festivas.

O povo fang, de Camarões, acredita que as bruxas têm um órgão interno extra, parecido com um animal, que sai voando à noite com o único intuito de arrasar as plantações ou envenenar o sangue das pessoas. Também crê que essas bruxas às vezes se reúnem em enormes banquetes para devorar suas vítimas e planejar seus ataques futuros, de modo que se alguém duvidar dessa crença, sempre haverá uma pessoa que dirá que o amigo de um amigo viu uma bruxa sobrevoando um vilarejo numa folha de bananeira enquanto lançava raios mágicos contra suas vítimas inocentes.

Na Melanésia e na Nova Guiné, os ilhéus perceberam que os brancos que utilizavam aquelas coisas estranhas e maravilhosas nunca fabricavam eles mesmos essas coisas. Ao contrário, essas coisas sempre vinham nas cargas dos navios e, mais tarde, dos aviões. Além disso, quando alguma coisa precisava de conserto, jamais viam um branco trabalhar nesse conserto, sendo que esse item era imediatamente enviado para algum local desconhecido seja por navio ou por avião. Para os nativos, então, a carga tinha que ter uma origem sobrenatural, de onde surgiram os chamados “cultos à carga” que se espalharam por diversas ilhas do Pacífico Sul.

Entre os cristãos normais, existe a crença de que certa vez um homem nasceu de uma mãe virgem, sem nenhum pai biológico envolvido. Esse mesmo homem sem pai chamou a um amigo chamado Lázaro, que estava morto havia tempo bastante para cheirar mal, e Lázaro imediatamente voltou à vida, sem contar que o próprio homem sem pai voltou à vida depois de ficar três dias morto e enterrado. Os cristãos normais acreditam também que se você murmurar coisas dentro da sua cabeça, o homem sem pai, e seu “pai”, que é ele mesmo, ouvirá seus pensamentos e pode tomar as devidas providências em relação a isso. Se você fizer uma coisa ruim ou alguma coisa muito boa, o mesmo homem sem pai tudo vê ainda que ninguém mais veja, considerando-se que o “pai” do homem sem pai que, como já disse, é ele mesmo, é capaz de ouvir simultaneamente os pensamentos de todas as pessoas do mundo. No mesmo sentido, os cristãos normais crêem que o pão e o vinho abençoados por um padre, que precisa necessariamente ter testículos, transformam-se no corpo e no sangue do homem sem pai – sem falar na crença de que a mãe virgem do homem sem pai nunca morreu, mas foi transportada corporeamente para o Céu.

Pelo pouco que foi dito, pode-se nitidamente notar que as religiões simplesmente proclamam que existem coisas estranhas que não nos cabe compreender. Fiéis virtuosos que conseguem acreditar em uma coisa absolutamente absurda, que contrarie todas as evidências e se mostre completamente insustentável e irracional, são vistos pelas religiões como pessoas que terão garantidas suas recompensas em algum lugar que não se sabe dizer qual é, mas que, segundo elas, realmente existe. Quanto mais cega for a crença e quanto mais ela desafiar as evidências, mais virtuosa e “boa” é a pessoa. Lutero estava certo: “quem quiser ser Cristão deve arrancar a razão dos seus olhos” – e sua frase não vale só para os cristãos.

O pior disso tudo é que temos a tendência a um respeito automático e sem questionamentos a qualquer crença. Somos completamente covardes quando se trata de religião. Defender que o chá de “ayahuasca” faz parte de um determinado conjunto de fé, é algo perfeitamente plausível. Mas argumentar que os doentes terminais teriam direito a utilizar maconha para aliviar sua dor, ainda está distante de ser aceitável. Alguns podem dizer que a religião faz bem às pessoas, fornece-lhes explicações, conforto nas horas difíceis, e que por isso deve ser respeitada sem qualquer ar duvidoso em todas as situações. Mas como já falou George Barnard Shaw, “o fato de um crente ser mais feliz que um cético não quer dizer muito mais que o fato de um homem bêbado ser mais feliz que um sóbrio”.

P.S.: E 2011 permanece sendo um ano de letra miúda. Mistérios da internet.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O CÃO DE DOGVILLE.

Informação não substitui cultura. Cultura não substitui conhecimento. Conhecimento não substitui organização. Por quê? Simples: ramos não substituem buquês. Tudo é questão de olfato. Por conta disso, cada qual tem sua versão do mundo. Provar minha tese é fácil: leia dez rótulos de vinho. Quem concorda com as supostas sensações lá descritas? A ordem do mundo é o caos. Importa saber se estamos construindo uma nova Babel a partir de um planeta ou de uma nave espacial. Ou será que o planeta é uma nave espacial? E melhor: até que ponto uma nave espacial não pode se tornar um planeta?

Possibilidades e potencialidades: liberdade e disposição – talvez sejam as únicas virtudes que não se percam no interesse. Mas qual possível liberdade e qual potencial disposição podemos ter em uma realidade castrada de imaginação e preenchida com “utilidades”? O monopólio do real leva invariavelmente à arrogância. Não importa uma estrutura libertária, mas sim uma liberdade de estrutura: isso é tudo o que não temos quando em resposta a qualquer busca que fizermos, o Google nos traz anúncios publicitários que, em tese, proporcionam a gratuidade da nossa busca. Mas não existe nada gratuito. Alguém sempre paga o pato. Se a publicidade implica na possibilidade de venda e todos somos de algum modo vendedores e de todo modo consumidores, o custo dessa gratuidade de uma ou de outra forma reverterá para nós.

Como nos contentamos com ramos, a passividade é o único passo. Buquês estão fora de cogitação quando o aroma do papel dá espaço ao hermetismo dos bytes. Tudo é questão de abstract, indexador, hiperlink. Resumos de resumos de resumos. A profundidade não é mais profunda desde Deep Throat. O único blog verdadeiro desapareceu com a Grécia Antiga. Isso daqui é um eco. Cá estamos, impossibilitados de parar pela hipotermia que seria consequência do gelo fino no qual patinamos. A velocidade é o contraponto do humanismo. A Era da Informação não busca entendimento, mas comunicação. A vulgata do english tem uma só tradução: this is the end. Falta-nos nostalgia porque nos falta imaginar. Falta-nos utopia porque nos falta um futuro distante dos alucinógenos.

Temos muito que construir desde que possamos pensar em desconstrução. Não uma desconstrução plena de tijolos de barro, mas uma desconstrução na qual vejamos que todo palpável é música, fugidio e belo em sua escassez de possíveis compreensões fora do conhecimento das partituras. Enquanto nada disso chegar, permaneceremos isolados não apenas dos outros, mas principalmente de nós mesmos. Inoculando a perversão e o estresse em nossos dias, imersos no desgosto por já termos quebrado todas as regras possíveis, fazendo de Anna O. uma mera piada de Breuer personificada pelo reverso tenro de Amy Winehouse e Lady Gaga, continuaremos a pensar que falar sem parar é o mesmo que simplesmente falar.

Queremos o excesso porque nos falta a percepção do escasso. Queremos o escândalo porque falhamos ao perceber o trivial. Empacotados no virtual, mais vale o MSN à uma mesa de bar. Românticos são ultrapassados quando a música destrói a possibilidade de qualquer conversa – por isso as baladas abalam a intimidade longe da objetificação, a qual é apenas a convivência de solidões em motéis mais do que baratos. Essa felicidade pobre é o resultado das nossas escolhas perpassadas por possíveis liberdades condicionadas pelo ganho e potenciais disposições globalizadas pelo consumo.

Quando Gaia virou Terra, nossa força vital se perdeu. Zumbis auto-proclamados, chicoteados no incessante sadomasô dos outdoors dos gozos que recalcamos e desaguamos na fatura dos cartões, interessa-nos uma calota neon – nada mais. Mas o crédito um dia acaba. Daí talvez compreendamos a cultura da informação, o conhecimento da cultura e a organização do conhecimento. Quem sabe aí percebamos que um buquê não é o mesmo que um ramo e que um ramo pode ser muito mais que um buquê.

Se a ordem do mundo é o caos, apenas do caos é que brotará o novo, reconhecido pela solidão indevassável, pela insignificância cósmica e pela consciência total de que, apesar de vivermos como sonhamos – ou seja: sós, como disse Conrad – tudo é porvir quando “planeta” for sinônimo de “espaçonave”: Babel de diferentes mas iguais, pois mortais. O vinho então terá outro sabor nada afeito à rótulos, desapegado de um Morfeu de Hades mas irmão de um Apolo de Dioniso. Só a tragédia liberta o riso na proporção do inevitável.

Moral cinéfila: 2010 não foi o ano em que fizemos o contato. Mas ainda podemos escolher entre a pílula azul e a vermelha. Só assim veremos o cão de Dogville. Ou não.