A Bíblia está recheada de passagens interessantes e bizarras que tem a pretensão de ensinar uma espécie de moralidade aos fiéis. Essa moralidade, porém, ao menos no Antigo Testamento, ensina coisas no mínimo desaconselháveis a qualquer padrão que se considere aceitável nos dias atuais. Claro que podemos associar isso à antiguidade das Escrituras, como muitos dizem, já que elas representam a cultura de determinadas épocas. Mas quando penso que certas pessoas levam a palavra da Bíblia ao pé da letra e que essa palavra levada ao pé da letra muitas vezes é ensinada às crianças, começo a ficar apavorado.
Uma das passagens que chama atenção e que serve de exemplo para o que estou falando, diz da destruição de Sodoma e Gomorra. Situada no Gênesis, fala que Javé, irritado com essas duas cidades, resolveu destruir o mundo com um imenso Dilúvio. Mas em Sodoma um homem e sua família poderiam se salvar. Este homem era Lot, sobrinho de Abraão, o único sujeito de bem dali. Então Javé enviou dois anjos para informar Lot que deveria sair da cidade antes que ela fosse consumida pelo enxofre, pois antes da água viria o fogo. Lot recebeu os anjos com extrema hospitalidade, ao que os homens de Sodoma cercaram sua casa e começaram a bradar: “Onde estão os homens que vieram à tua casa ao cair da noite? Traze-os para fora, para que deles abusemos” (Gênesis 19, 5).
Lot respondeu: “Eu vos rogo, meus irmãos, não queirais fazer o mal. Tenho duas filhas virgens; eu as vou trazer, e podereis fazer com elas o que bem entenderdes; mas não façais nada a estes homens, porque foram acolhidos à sombra do meu teto” (Gênesis 19, 7-8). Nesse momento, os homens de Sodoma investiram contra Lot, mas os anjos os cegaram e ele pôde fugir com sua família da cidade. Os anjos, contudo, advertiram: “Não olhes para trás, nem fiques parado em lugar algum desta região; foge para os montes a fim não pereceres” (Gênesis 19, 17). O que aconteceu? Lot e suas filhas se salvaram, mas sua mulher foi transformada em um pilar de sal por ter olhado para trás enquanto Sodoma era destruída.
Tempos depois, as duas filhas de Lot reaparecem, mas de uma maneira peculiar. Desejosas de companhia masculina enquanto moravam com o pai em uma caverna no alto de uma montanha, decidem embriagar Lot para transar com ele. Na primeira noite, Lot não percebeu que sua filha mais velha lhe seduzira e a engravidou. Na segunda noite, novamente embriagado, Lot não percebeu que a filha mais nova se achegara dele e também a engravidou (Gênesis 19, 31-36). E esse homem de uma família no mínimo conturbada, que havia oferecido suas filhas ao estupro dos sodomitas, era o único sujeito de bem de Sodoma. Pode? Para certos fiéis, não pode e nem deve: simplesmente é, sendo que o projeto cristão, como falou Lutero, é a substituição da razão pela fé.
Outra passagem interessante que detém relação com Lot e sua família, encontra-se no capítulo 19 do livro dos Juízes. Um levita (ministro de culto) viajava com sua concubina em Jebus, ao que resolveu passar a noite na casa de um velho que lhe acolheu. Enquanto jantavam, os homens da cidade bateram à porta do velho e disseram: “Manda para fora o homem que entrou em tua casa, para que dele abusemos” (Juízes 19, 22). O dono da casa replicou: “Não, meus irmãos, não cometais semelhante mal. (...) Aqui está minha filha virgem. Vou mandá-la sair, podeis violá-la e fazer-lhe o que quiserdes, mas não pratiqueis tal absurdo com este homem” (Juízes 19, 23-24). Acontece que os homens não quiseram ouvir o velho. Foi a vez do levita agarrar sua concubina e a levar para os homens que estavam lá fora, os quais “a violaram e abusaram dela a noite inteira até de madrugada” (Juízes 19, 25). Quando amanheceu, a mulher estava caída à porta da casa. Chegou seu marido e falou: “Levanta-te e vamos” (Juízes 19, 28). Ela não respondeu. O levita então a colocou em cima de um jumento e longe da casa do velho, ao que parece, “tomou um cutelo, pegou o corpo de sua concubina e cortou-o membro por membro em doze partes que enviou por todo território de Israel” (Juízes 19, 29).
Claro que isso não foi à toa. O motivo é que o marido esquartejou a mulher para provocar vingança, a qual causou uma guerra contra a tribo de Benjamin, onde sessenta mil homens foram mortos, praticamente exterminando os benjamitas (responsáveis pelo estupro da mulher do levita), não fosse uma decisão. Qual? Como as mulheres benjamitas haviam sido exterminadas e havia a pretensão de que nenhuma tribo de Israel se extinguisse, uma assembléia de anciões tomou as providências: “Cada ano celebra-se uma festa de Javé em Silo. (...) Ide esconder-vos nas vinhas e olhai bem; quando as jovens de Silo vierem a dançar, saireis das vinhas e cada um tomará uma mulher dentre as jovens de Silo” (Juízes 21, 19-22). Dessa forma, com um estupro coletivo dessa vez consumado, uma mulher cortada em doze pedaços e sessenta mil mortos, além de jovens benjamitas violentadas por homens sedentos por sexo, tudo estava de acordo com a vontade de Javé.
Mas isso não soaria tão estranho se a edição da Bíblia que tenho (Edições Loyola, 1989), comentada no livro dos Juízes pelo Fr. Eurico Peters, não dissesse, em uma nota de rodapé que serve de explicação ao que sucede com a mulher do levita, que “a hospitalidade oriental é um desejo sagrado e um direito humano” (p.251). Que hospitalidade é essa que leva o dono da casa a oferecer sua filha virgem a um bando de estupradores? E que direito humano e desejo divino é esse que permite que um homem entregue sua mulher a esse mesmo bando e, quando a encontra desfalecida depois de uma noite de violências, apenas diz “levanta-te e vamos” (Juízes 19, 28)? Parece que as palavras falam por si dessa santa hospitalidade.
Diante de tudo isso, até entendo uma jovem maranhense que assassinou o pai e a mãe porque eles não quiseram lhe dar dinheiro para cobrir dívidas de dízimo que tinha com a sua igreja evangélica. O fato dessa jovem, Lineusa Rodrigues, ter matado seus pais com pauladas e depois cortado suas mãos com um serrote, também não me espanta. Seu motivo é claro: “Eu fiz por Deus”. E quando determinadas pessoas consideram um livro sagrado ao ponto de jamais contestar o que ele diz, é isso que acontece quando as coisas são levadas às últimas consequências. O desenvolvimento da moralidade humana em nada se relaciona com qualquer senso moral absoluto. Quando penso que passagens como as que comentei podem ser ensinadas às crianças com a intenção de formar sua moralidade a partir de textos considerados sagrados, algo de muito errado está acontecendo. O pé da letra dá um pontapé na razão, com o perdão do trocadilho. Se John Trapp está completamente certo ao dizer que “onde a Bíblia não tem voz, não devemos ter ouvidos”, talvez fosse melhor ser surdo.