sexta-feira, 27 de maio de 2011

ALINE.

Aline pouco pôs os pés na rua durante vinte e cinco anos. Mas um dia ligou para uma colega de faculdade e saiu na noite de sexta-feira. Foi então que conheceu Renato. Casou logo depois. A união parecia comum. Ele era gerente de cooperativa e ela psicóloga contratada de clínica particular. O que ninguém sabia era que jamais haviam tocado o corpo um do outro.

Nos primeiros meses de casamento, Renato até tentara. Mas ao perceber que a reclusão de Aline não cessava ainda que ela houvesse decidido sair numa sexta-feira há noite, Renato esqueceu que tinha desejo e passou a se dedicar apenas ao trabalho. Quando Aline chegava de tardezinha, ele já havia preparado o jantar. Mas ao invés de falar sobre o dia a dia ou assistir a novela das oito, levantavam da mesa assim como sentavam, completamente mudos, trocando boa noite antes de dormir.

Permaneceram assim por nove anos. No décimo aniversário de casamento, Renato perguntou para Aline se ela gostaria de fazer uma festa para comemorar as bodas. Ela aceitou. Renato reservou o salão da igreja que freqüentavam e convidou todos os funcionários da cooperativa e os parentes do casal. Aline distribuiu convites na clínica para suas quatro colegas. A festa não durou muito, mas foi considerada um sucesso.

Chegaram em casa perto da uma da manhã. Aline foi tomar banho e Renato abriu um livro sobre gestão cooperativa para uma reunião do dia seguinte. Ao sair do banho, vendo Renato sentado na cama ainda com a roupa da festa, Aline perguntou se ele havia gostado do jantar. Ele se surpreendeu com a pergunta e disse que sim, que achara tudo ótimo e que não poderia haver maneira melhor de comemorar dez anos de casamento. Aline falou que também gostou da festa, deu boa noite para Renato e apagou a luz. Ele olhou para o corpo de Aline e pensou em como era sua pele por detrás do cetim branco. Mas logo lembrou da reunião, tomou seu banho e dormiu.

Exatamente cinco para as seis, foram acordados por um forte estrondo. Renato arregalou os olhos e pulou para a janela. Um carro havia batido em um poste de luz. Perto do carro, uma motocicleta com o guidom retorcido estava caída por cima de um homem desacordado. Renato correu até local, pois notou que uma fumaça preta saia do motor do carro e imediatamente pensou que ele poderia explodir. Aline, percebendo a pressa de Renato, levantou-se, olhou pela janela e voltou a deitar.

Renato subiu rapidamente as escadas e disse para Aline que tinham que chamar com urgência uma ambulância, porque o homem da motocicleta havia perdido a perna esquerda. Aline disse que não sabia o número do hospital. Ele acabou ligando para a polícia, falando ofegante mas contido sobre o estado do homem da motocicleta, já que a pressa não lhe permitira ver quem estava no carro. Ao pôr o telefone no gancho, disse para Aline que ia voltar para lá até os policiais e a ambulância chegarem.

Aline apareceu na rua dois minutos depois. Olhou para o carro sem qualquer expressão e andou lentamente até o homem da motocicleta. Agachou-se e pôs a mão no seu pescoço. Ele estava respirando. Quando ouviu ao longe o barulho das sirenes que deviam estar a quatro ou cinco quadras dali, tapou com a mão esquerda a boca do homem e apertou seu nariz com a mão direita. Renato quis saber o que ela estava fazendo. Ela, quieta, fez força com as mãos e conferiu a pulsação do homem.

Quando a ambulância e os policiais chegaram, não havia mais o que fazer. Até mesmo o ocupante do carro havia falecido. O choque fraturara fatalmente seu pescoço. Após dar esclarecimentos para um tenente que não viu necessidade de levar o casal para a delegacia, Aline e Renato voltaram para a cama.

- O que você fez? – questionou Renato com olhar fixo no teto.

- Que horas são? – sussurrou ela calmamente.

- Seis e meia.

Com uma energia que Renato jamais vira, Aline arrancou sua roupa e beijou-o. Renato desligou o celular e esqueceu seus pudores. Ficaram na cama até a noite, não se preocupando com almoçar ou jantar. Em dez anos de casamento, era a primeira vez que tocavam o corpo um do outro.

Aline engravidou uns meses depois. Nasceu um menino forte que foi batizado com o nome de Renato. Na primeira noite que o casal passou em casa, Renato acordou de repente de um pesadelo. Olhou para o lado e Aline não estava ali. Certamente ela tinha ido espiar o filho, pelo qual demonstrara uma afeição calada desde o primeiro momento. Mas ao abrir a porta do quarto, Renato não notou qualquer movimento.

Desceu as escadas e no andar debaixo as luzes permaneciam apagadas. Apenas a televisão da sala estava ligada em um programa evangélico. Na mesa de centro, havia uma cerveja aberta e o celular de Aline logo ao lado. Mas o que Renato não pôde perceber naquele momento, é que o berço do filho estava vazio. As roupas de Aline, amontoadas sobre o colchão, preenchiam o espaço. Talvez por acaso fosse sexta-feira, mas certamente Renato não viveu para pensar isso. Seu corpo foi encontrado cinco para as seis da manhã, embaixo de uma motocicleta com o guidom retorcido. Sua perna esquerda sumira.

Aline e o filho nunca mais foram vistos. Todos dizem que Renato morreu feliz.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

SERTANEJICES.

Não gosto do sertanejo universitário. Não é só pela música. O nome me parece impróprio. Quando ouço “sertanejo”, penso em violas e no Chico Mineiro. Quando ouço “universitário”, penso em livros e na Universidade de Coimbra. O que isso tem a ver com essas baladas que povoam as terças e as quintas da cidade? Absolutamente nada. Mas talvez eu seja o errado da história toda.

O que os caras do sertanejo universitário fizeram, foi juntar elementos do rock com alguns floreios de acordeon que aparecem de vez em quando. Além disso, pegaram alguma coisa dos ritmos baianos e latinos e jogaram no liquidificador. Pra arrematar, ao invés de escreverem letras de choro pela mulher amada, passaram a dizer que a fila anda e querem mais é curtir a vida. O resultado? Músicas que se grudam no ouvido e podem ser tocadas por qualquer violeiro de meia-tigela depois de um litro de whisky.

Claro que quando falo de violeiros bêbados, me refiro a essa gurizada que martela violões madrugada adentro. Não falo de músicos profissionais, os quais devem tocar essas coisas pra ganhar alguma grana. Já conheci um excelente guitarrista, fã do Pizzarelli, que se prostituiu numa dessas bandinhas com nome esotérico pra conseguir se sustentar. Com o tempo ele me disse que passou a gostar daquilo. Ficava feliz ao ouvir a Peluqueira. Mas acredito que esse gosto surgiu unicamente pra que o sujeito não sentasse uma bala no ouvido. Trabalhar com algo que se odeia é horrível. Como as pessoas conseguem? Não convém comentar.

O interessante de se falar, é que o sertanejo universitário quer dizer muito mais do que grita minha interpretação chata, estrita e até preconceituosa. No fim das contas, já que não pretendo me alongar em análises pseudo-sociológicas ou o que o valha, ele diz de certa liberdade afetiva dos jovens atuais. Se uma mulher deixa o camarada, aparentemente quinhentas outras mulheres surgem. Se um homem adorna a cabeça da moça com um par de guampas, a mesma coisa acontece. Isso não é ruim. O fato é que realmente a fila anda e as pessoas querem mesmo é aproveitar a tal da vida.

Mas será que essa é uma verdade? Acho que sim, mas em partes. Não consigo aceitar que essa coisa dos relacionamentos serem como líquidos que escorrem de um lado para o outro e nunca se fixam em algum lugar seja proveitosa para as pessoas. Em realidade, acredito que isso causa mais angústia que prazer. Há alguns anos desconfio que a razão das nossas existências esteja vinculada à arte e ao amor. À arte na medida em que sempre precisamos criar algo, seja filhos, cães ou livros. Ao amor, na medida em que sempre necessitamos amar algo ou alguém justamente para criar. Trata-se de um circuito fechado que delimita os contornos da nossa vida.

Se eu jogar essa minha desconfiança sonhadora na lógica das festas e mesmo das letras do sertanejo universitário, o que verei são pessoas negando uma melancolia por não conseguir realizar o que pretendem da vida em troca de uma superficialidade de pele e bocas. Não que eu seja contra isso. Gosto muito, aliás. Mas acontece que a juventude atual está parecendo tão, mas tão carente de propósitos seja no campo que for, que essa liquidez dos relacionamentos invariavelmente escorrerá para outros campos da vida. Conseqüências? Importa o momento, o efêmero, o prazer que tenho com o outro e jamais a própria existência do outro.

Talvez eu seja apenas o mesmo velho de vinte e cinco anos agora com vinte e seis. Esses dias, conversando com uns amigos, cheguei à conclusão de que as gerações atuais não acontecem mais de vinte em vinte anos, como no meio do século XX, por exemplo, mas se modificam de cinco em cinco anos. Se as coisas realmente são assim, é óbvio que estou completamente atrasado diante desse pessoal do sertanejo universitário. Mas quem sabe seja apenas birra. Tendo Matzembacher e Frizzo por sobrenomes, não se pode esperar nada diferente. Só pra tentar mudar de idéia, vou a alguma dessas festas da terça e da quinta pra ver o que acontece. O máximo que pode ocorrer é eu ficar mais chato ainda. Ficarei sempre com o velho e bom sertanejo-dor-de-cotovelo. Nada melhor que dizer que a mulher é uma ingrata, que devemos nos resignar com a tristeza da vida e que existem nuvens, lágrimas e litros de cerveja sobre todos os olhos. E pra deixar a coisa mais hard ainda, prefiro o Vicente Celestino acima de tudo. E era isso.

sábado, 14 de maio de 2011

NO CÔMODO DOS FUNDOS É JOGO DURO, MINHA GENTE!

O Brasil é injusto com a novidade. Não permite que seu sangue se renove. Prefere que as artérias entupam um coração que há muito deixou de bater desde que o corpo, petrificado pelo formol dos direitistas e dos pseudo-esquerdistas, aparente um sorriso pleno de coluna social. Esse nevoeiro sibérico logo é alcatrão, boca tapada pelo mofo, positivismo do pólo de uma pilha que nada alimenta a não ser a troca contínua e galinácea dos canais na televisão. O sol não passa de um número no calendário.

Nós, brasileiros, levamos tão à sério essa coisa dos carimbos, esse ranço de Coimbra e de acreditar que o melhor que nos pode acontecer é uma folha de pagamento com a insígnia estatal timbrada por baixo dos valores, que nada mais se move por aqui. O Brasil é um escritório. Suas cidades, repartições. Bem... pensando melhor, diria que repartições lá nos fundos dos fundos de um kitnet esquecido inclusive pela fiscalização, dada a insignificância contrastante com a arrogância mesquinha e ridícula ostentada por dois ou três bares da moda latentes nesses comodozinhos à cóccix. Mas, enfim, de alguma coisa devemos estar a salvo, nem que seja de pensar, de levar uma vida plena que exige uma ou outra crise existencial semanal. (Hum... começo a achar que temos sorte...) Paramos no tempo da máquina à vapor. Ou talvez tenhamos nos contaminado com o sonho dos vapores das máquinas que nunca tivemos. A esquizofrenia é a sinapse atrasada dos nossos neurônios.

Mas (é duro, minha gente) temos que fazer escolhas. Temos, segundo a Constituição, obrigação de eleger deputados estaduais, federais, senadores, governadores e presidentes (pra não falar em vereadores e prefeitos). Em princípio isso ocorre em função da liberdade, da consciência de si que encharca as células independente da cerveja que tomam ou dos professores caolhos que tiveram na escola ou na universidade. Essa liberdade, voz formalmente expressa nos botões da urna, dita o futuro do país, o amanhã das esmolas e a regra de três dos juros bancários que consumirão um pouco mais o fígado de todos nós, como se vestíssemos a farda de Prometeu do nascimento à morte. O Olimpo de ontem é o esgoto de hoje financiado pela Caixa.

Escolhemos (?!) o quê? Empunhamos bandeiras, admiramos discursos, esbravejamos em mesas, bares e almoços de domingo, quando parentes, amaciados pelo álcool, esquecem um pouco da futilidade das suas existências, jargões preparados por cima das mais lustrosas bancadas de vidro, onde marqueteiros, como corvos, bolam estratégias de luzes e cores para adocicar (perdão pelo momento Beto Barbosa) a curra geral e consentida que afetará o pão que comemos e a camisinha que usamos. A beleza é privilégio dos bisturis.

Publicamente, há sempre aquela esperneada protocolar ou ao menos a possibilidade irônica, débil e quase inútil disso. Se debochamos, somos barrados. Se denunciamos, multados. Nossa escolha está entre ser criado no pátio de casa e habitar um escritório que consumirá nossa libido pelo resto dos dias, ou ser criado na rua e habitar o fundo das grades de qualquer presídio que por certo nos matará antes dos trinta, dando fim a toda e qualquer angústia política, psicanalítica, econômica e futebolística que porventura nos afetaria no futuro. Ser livre é segurar um garfo sem dentes. O julgamento sumário é o índice das nossas línguas travadas pela autocracia jurisdicional brasileira. A Justiça é uma cafetina em crise hormonal.

Talvez estejamos certos em conservar o cadáver brasileiro em um altar ungido de civilidade e bem-estar, onde senhoras, dominadoras da arte da combinação de cores entre bolsas e sapatos supostamente originais, tomam chá promovendo banquetes beneficentes, onde senhores de bom crédito contratam prostitutas por celular para marcar encontros em suas caminhonetes à diesel ou em algum apartamento que seu calote na Receita proporciona pagar, e onde, nas periferias, nos bairros que se querem centro para apenas crescer envoltos na absurdidade das semanas, propagam-se religiões e mais religiões que não ligam ninguém a nada a não ser ao medo chuvoso e receoso da verdade recheada pelo bônus dos dízimos, como um suposto pai prestes à abrir o exame de DNA do filho que lhe é um completo estranho. Nunca choramos pelos outros: sempre choramos por nós. É aí que entra Deus. O pão é a muleta de toda teologia. Compartilhamos o medo em migalhas no poço do desespero.

A massa sabe do que falo. Mas não sabe que é massa. Julga-se singular quando suas aspirações são coletivas. É só o movimento de uma frustração caudalosa e brocha. O frio da distante Rússia, o calor do ensolarado Grand Canyon, consagrados pelo conservante que ainda exala da pele de Lênin e do mefistófilo espírito de Marshall, permanecerão como perfeita amostra do que somos: peitos medrosos, vidas medianas, amores higienizados, ambições amputadas, sexo contabilizado, e, acima de tudo, empanturramento, fastio que enche nossas tripas com vento rarefeito, ar da estupidez das nossas possibilidades de escolha. A lucidez é o mal dos suicidas e a bênção da tranqüilidade.

Assim é que o novo é crime e não se trata de tatuagem do Brasil, mas de cicatriz do planeta. O mundo, aliás, já acabou. Mas não merece manchete. Os juros provêm da sustentação de um alicerce há muito corroído. Isso é que nos dá esperanças. A dívida foi saldada, mas seu reflexo, espelho defronte espelho, eternamente deflagrará a culpa em nossos corações: não somos o país de qualquer amanhecer, não somos um planeta privilegiado pela bondosa mão de qualquer Deus. Somos animais semi-pensantes que sofrem na auto-ilusão da procriação. Talvez nessa prodigalidade é que se encontre nossa grandeza limitada pelo acaso do nascimento, pela dor dos ossos que crescem e pela amnésia completa que será a sucessora do luto pelo nosso fim: bandeira preta que durará o tempo de um cigarro. Da consciência dessas palavras, escassa e bela, surgirá uma tímida felicidade feita de asfalto e silício. O mais é a verdade morta no olhar dos cães. Nossas escolhas são testes de uma experiência mal-sucedida. O resto, lixo. A pena é saber que vale a pena. Só quem gosta de sofrer consegue viver.

Eis nosso contentamento: única consciência furtada de auto-engano.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O NASCIMENTO DO CIDADÃO.

Quando no Brasil se deu o parto da República, do seu ventre, décadas depois, um homem foi expelido sem vida. Nasceu nu, como todos. Mas por questões éticas, arranjaram-lhe um macacão azul. Ninguém ao redor teve ânimo para reanimá-lo. Não era conveniente. O temor por um coração que pulsa é maior que o medo por um coração que pára.

O Cristão que estava ali, versado na engenharia das mais belas torres, disse que, em nome de Giordano, o Bruno, deveriam conservá-lo em formol. “A eternidade da carne só num pote de vidro se dá!”, emocionou-se teomante e mescalino. O Moralista, mais ao lado, clínico das sangrias infalíveis, falou que aquele homem serviria, qual mito teofobista, de exemplo para todos os homens: “Sua roupa será a bandeira de toda gente de bem.”, profetizou costumado e sério pela poeira da romanidade. Mas o Democrata, ao centro, gravura de reta conduta, emudeceu em princípio, apesar da grande expectativa daquele ar de tabaco.

Pediu sussurrante ao garçom um pote grande o suficiente para que o homem coubesse e fosse lá conservado. Encomendou duzentos e cinqüenta litros do mais limpo formol para que o homem ficasse acomodado e visível em seu macacão azul. Convocou as lupanares para uma conversação que não se deu e escreveu em letras garrafais quais seriam as regras para que o homem resistisse aos séculos. Sem qualquer manifestação das vozes ao redor, também decidiu que aquelas regras deveriam ser impressas em letra miúda imediatamente, colando-se as mesmas no pote do homem imerso no cristalino líquido dos seus amanhãs.

Ecce homo!”, entoaram trezentas laringes ao contemplar a bela natureza morta em cima da mesa. Mas quando o Cristão, o Moralista e o Democrata perceberam que a República, à Príapo amordaçada, desfalecia perto do balcão, intuíram que algo faltava ao homem. “Se até Jesus dos Magos ganhou presentes, também merece nosso homem algum.”, especulou o primeiro. “Mas que presente se dá a um natimorto?”, enervou-se o segundo, privado das Traças de Lácio.

Fez-se então um silêncio de trinta minutos. Nenhum olhar sabia como presentear o homem do pote de vidro. Heranças longínquas rebuscavam suas mentes e tudo quanto podiam fazer era se inspirar na cachaça. O pote continuava aberto. Faltava, antes de fechá-lo, um toque que dissesse da identidade daquele homem cercado de letras miúdas, morto filho que fizera da República mãe, ainda que o genitor chamado M. houvesse partido para as Terras do Norte há vários anos.

Foi aí que o Democrata, exegeta do torno de Coimbra, lembrou de uns papéis que viu em França e de umas chaminés que em Londres o encantaram. Igualmente lembrou da escultura de um Olho que vira às portas de uma viagem que fizera ao interior da grandiosa América de Washington, apagando imediatamente, por não convir, tudo que um calvinista lhe dissera. Num clarão que reuniu as faíscas do seu cérebro na mais performática luz, percebendo a rigidez verde-amarela da República de pupilas secas, enfim pronunciou: “Dar-lhe-e-mos uma brilhante coroa dourada para que o pote seja fechado. Providenciaremos réplicas de cera desse homem e espalharemos tais potes por todo nosso território. Serão a base e o modelo para o povo. A República, que jaz sem expectativa de coito há quatro horas e meia, agora chamar-se-á Estado. E dessa soma ptolemaica, soberano, surgirá nosso Estado-Nação!”

Os aplausos ressoaram pela madrugada tropical. Copos foram lançados ao ar e vestidos, antes presos às ancas das moças da casa, caíram aos eretos desejos presentes. Porém, o Moralista se deu conta de que faltava mais alguma coisa. “Toda coroa representa majestade. Temos de dar um nome a essa coroa.”, falou dentre lufadas de fumaça presas pela boca que lhe sugava a língua. “Estamos a trazer a Cidade de Deus para o cá dos homens. Estás certo: precisamos de um nome para a coroa.”, inquietou-se o Cristão à Agostinho, escondendo-se da carne cada vez mais nítida na sua batina marrom.

O Democrata, famoso por suas cantatas gregas de direito e justiça nas cadeiras de tantos boleros, havia esquecido o óbvio. Enovelado por seu discurso de passados, o adjetivo da coroa havia lhe escapado ao Verbo, fiat lux do porvir. “Chamar-se-á Coroa do Voto. Sim: seu nome será A Coroa do Voto.” “Mas e o nosso homem que nome terá?!”, gritou de espasmo uma mulher nos seus vinte e dois anos, com a anágua pela cintura e um outro alguém por cima. O Cristão fitou o Moralista que cerrou as pálpebras para o Democrata. Restou a esse a resolução daquela noite histórica: “Seu nome será Cidadão.”

O que se passou depois, dizem, não foi nada demais. Tratava-se do Brasil. A expressão que trouxe o sol para a festa que seguiu, até hoje é estampada na testa de cada homem que aqui nasce vivo ou morto: “Deixa estar.” Seu autor, desconhecido estrangeiro de Alexandria, perdeu-se no vinho interminável – e naquele prostíbulo tudo permaneceu imune ao tempo. Mas um grave erro adveio dessas brincadeiras de salão: esqueceram de fechar o pote do Cidadão.