terça-feira, 21 de junho de 2011

O EFEITO GANGORRA.

João era um menino de uma perna só. Nascera assim. Quando o médico percebeu que nem o toco da perna ele tinha, falou pra mãe:

- Olha, vai ser complicado ele viver desse jeito...

Ela, meio arrebentada da barriga pra baixo, olhou pro médico e resmungou:

- De qualquer modo é complicado.

Quando completou sete anos, João ganhou uma perna de pau. Presente do pai. Era uma perna pobre. Mas era alguma coisa. Antes da perna de pau, João se arrastava que nem cobra. Com a cara colada no chão, via coisas que outras pessoas jamais enxergariam. Havia tardes de janeiro em que gostava de analisar os vincos entre as lajotas pra comparar se os da direita eram simétricos aos da esquerda. Esquecia que o sol brilhava e que na praça em frente crianças iam pra cima e pra baixo na gangorra que o Vereador Nelson instalara no inverno passado.

Quando João ganhou a perna de pau, o pai lhe disse:

- Filho: essa perna sou eu que estou te dando, mas tu tens que agradecer pro Vereador Nelson que mora na Zona Leste. Por isso amanhã vamos lá. E vamos à pé, só pra provar pro Vereador que essa perna agora te faz uma criança normal.

O Vereador Nelson estava sentando na varanda com um charuto gordo no canto da boca.

- Agora és um menino normal!

- Sim, doutor! E graças ao senhor agora ele é um menino normal!

- Graças a mim não, meu caro! Quem fez isso foi Deus!

João tentou sorrir. Mas não conseguiu. Culpa dos cabelos pretos lambidos. Mas como sentiu o pai lhe dar um cutucão nas costas, forçou um “obrigado” e um riso em colchete pra não ouvir desaforos.

Naquela noite, quando todos foram dormir e João estava só no quarto, sem a perna de pau que tirara pra conseguir pegar no sono, decidiu se arrastar até a porta e abri-la devagarzinho. Era uma noite clara. A gangorra permanecia parada em suas tintas foscas à luz amarela dos postes. João sentiu vontade de ir lá. Mas não com a perna de pau. Queria fazer o caminho das cobras.

A calçada estava gelada e a rua quente. Ele nunca reclamara dessas sensações. Gostava de perceber que se as pessoas comuns andavam com duas pernas, ele andava com o corpo todo. Sabia que mesmo sem uma perna poderia subir em uma das pontas da gangorra. Mas certamente ficaria no chão e mais nada. Teria de haver mais alguém para o Efeito Gangorra se concretizar. Como não havia ninguém, notou a falta de sentido da sua jornada e com algum pesar se arrastou pra casa.

Quando atravessava a rua, rosto manchado de terra e grama, uma caminhonete atropelou João. Certamente o motorista pensou que era um cachorro. Não fez questão de parar. Mas ele atropelara João, o qual, antes de morrer, olhou uma última vez para a gangorra e lembrou das palavras do Vereador Nelson:

- Graças a mim não, meu caro! Quem fez isso foi Deus!

Encontraram o corpo de João pelas sete da manhã. O pai lamentou o fato de não ter chaveado a porta. A mãe disse que aquilo era muito complicado. O Vereador Nelson pronunciou um extenso discurso que ninguém ouviu pela forte chuva que caia no zinco da funerária. O enterro de João foi de tardezinha e todos esqueceram da sua vida de sete anos.

Permanece só a gangorra meio capenga e podre. Talvez esteja iluminada por esse entardecer acinzentado do dia vinte e um de junho. Se em quarenta e oito horas apenas uma pessoa subir em uma das suas extremidades, nada acontecerá. Ninguém brinca sozinho.

O Efeito Gangorra exige companhia.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Jam n° 5.

Guardei teu corpo na caixa de fotografias. Membro por membro, traduzi teus traços em preto e branco para que ninguém pudesse tocar tua imagem. Um dia esqueci a caixa aberta e as baratas picotaram tuas coxas. Tentei remontar tua pele, colar ângulo por ângulo a nivelação da tua geografia. Não consegui. Ficou apenas teu cheiro que os meses tornam mais distante, como se teu toque no meu fosse apenas um sonho que quero lembrar – mas não consigo.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Jam n° 4.

A cabeleira quieta da cidade sonolenta, telhas fossilizadas na noite fria de junho, cobre de sonhos loucos os olhos de quem deseja livrar seu corpo do espasmo que uma boca espera.

As mãos espumam marés na manta que a pele veste.

Deslizam pêlos ralos, sedentos por despedidas, plenos de outros pêlos de tardes desmemoriadas.

Logo tudo já passa à margem de qualquer hora: aqueles que antes eram amores em forma bruta, são distâncias imensas de terras que se cruzaram em solidões repartidas nos fios do asfalto e da lua.