sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

SETE BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE NADA DEMAIS: PARTE FINAL.

Sabe qual é um dos motivos da existência de uma contemporânea judicialização da política no Brasil, presenciada inclusive em Santo Ângelo? Não sabemos conviver com a democracia e igualmente pouca ideia temos do significado da palavra “cidadania”. Em vez de assumirmos a bronca por efetivas mudanças federais, estaduais e municipais das quais o país necessita, preferimos relegar ao Poder Judiciário o status de derradeira instância moral e ética da sociedade – camuflagem despropositada e perigosa, dando margem ao ativismo judicial. 
Grande parte da população brasileira ficaria exultante se chegasse alguém e dissesse: 
- Cara, esse é teu chefe, teu líder supremo. Obedece ou o pau come. 
Muito mais simples, não é mesmo? Vivamos com isso. 
Ou será que queremos fazer diferente? 
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O sonho de meio Brasil é Joaquim Barbosa pra presidente e Luciano Huck pra vice. Enquanto um lida com o relho, outro eleva o “Lar doce lar” ao nível de programa governamental. 
É aquela clássica: passa a mão e senta o tapa. 
Funciona – a existência do Estado é uma prova disso (o sexo, outra). 
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Teoria: existe uma conspiração pra que as mulheres se mostrem insatisfeitas com seus corpos. Alguns possíveis responsáveis: (a) indústria da moda, (b) indústria do entretenimento, (c) cabeleireiros badaladérrimos e (d) dietas à base de chuchu. 
Mas talvez o responsável maior seja o olhar das outras mulheres. 
Crueldade pouca é bobagem. 
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Pessoas que utilizam reticências ao final de uma frase “pra dar um ar de suspense”. 
Pergunta: nada contra, mas existe coisa mais oitava série? 
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No Brasil, se o cara quiser ganhar algum com livros e palestras, tem que misturar filosofia, administração, marketing, neurociência, física quântica, Teoria dos Sistemas e metáforas zen-budistas, pra sair por aí dando uma de sofistão em conferências país afora. 
Sempre e cada vez mais, a enganação é a base da civilidade. 
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Por que todas as operadoras de telefonia utilizam a expressão “quadrado” em vez da expressão “sustenido”? E pior: por que utilizam a expressão “estrela” em vez da expressão “asterisco”? 
Complicado. 
Talvez isso tenha relação com as traduções abrasileiradas de filmes gringos. Exemplo 1: “Ocean's Eleven” vira “Onze homens e um segredo”. Exemplo 2: “Ferris Bueller's Day Off” vira “Curtindo a vida adoidado”. 
Parece pré-escola: pra não dizer que todos provêm de um ato sexual, você fala que a “sementinha do papai encontrou a sementinha da mamãe e o bebê nasceu”. 
Infantilização é a alma do negócio – políticos e marqueteiros sabem disso há séculos. 
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Gosto musical não define ninguém. Fato. 
Mas se somos transformados naquilo que contemplamos, como diz velho provérbio, como falar do sujeito que dá banda uma da tarde com um funk dilacerando os ouvidos dos pedestres? Pura materialização de testosterona? 
Mais que isso, o que dizer dessa gurizadinha que anda em bando com o celular berrando versos ao estilo “a mulherada tá louca / subindo na mesa / arrancando a roupa / e nóis doido atrás”? Chamariz (sic) para fêmeas? 
O futuro é tenebroso. Não tenho a menor confiança nessa geração que vejo pelas ruas. Ser otário e desprovido de neurônios funcionais parece seu maior objetivo. O gosto musical apenas reflete isso. Não se trata de preconceito: trata-se de constatação. 
Conclusão: a globalização se torna evidente pela planetarização da imbecilidade – quanto mais idiota melhor.

ENSAIO DE DEZEMBRO (OU “PROLEGÔMENOS PARA O FIM DO MUNDO”).

O passado é como um tecladista de sexta tocando Wando em uma churrascaria de beira de estrada. Você sabe que é algo franco, mas também tem a consciência de que é algo patético. Relembrar é necessário. Mas está longe de ser bom. Desconfio da veracidade de todas as falas que dizem ser a infância a melhor época da vida, por exemplo. A razão é simples. Se você colocar os poréns na balança, perceberá que jamais sofreu tantas privações e/ou restrições quanto na infância. Família, escola, religião, crueldade mirim e o escambau. Por todos os lados, a criança encontra correntes ao seu ímpeto de liberdade. 

Quem nunca tomou um corridão por “fazer arte”? Pois é – tenho a teoria de que essa é uma das razões para as pessoas geralmente terem tanto pudor com a palavra “arte”. Quem sabe o inconsciente a remeta diretamente para o termo “transgressão”, de maneira que crescemos com receio de andar fora da linha em razão da punição que supostamente receberemos se a praticarmos. Será esse um dos motivos para o aparente marasmo criativo contemporâneo? Não sei, até porque não acredito em mansidão artística. Basta você vasculhar que encontrará zilhões de sujeitos antenados em sua época, interpretando essa babel atual por meio de signos que a descrevem melhor que a mais complexa teoria. 

Problema é: quem tem coragem para se arriscar no caos? Resposta é: em um contexto de mais de seis bilhões de pessoas, poucos, raros, escassos. A criação incomoda porque nos põe face a face com nosso maior temor: a finitude. A perspectiva do “criar”, envolve-nos na inevitável responsabilidade de construirmos um projeto de vida e com ele nos comprometermos. Mas quem tem tempo para pensar nisso? Pessoal tem que pagar as contas, correr atrás do diploma e se cuidar para não ser assaltado. Vivemos enclausurados em bolhas de sentido que cremos universais, mas que apenas expressam nossa falta de coragem com relação ao diverso, ao novo, ao diferente. 

Se por um lado somos individualistas ao extremo, preocupados unicamente com nossos jardins e umbigos, por outro temos pena do Will Smith e sua solidão enlouquecedora em “Eu sou a lenda”. Quando nos defrontamos com o fato de que dependemos uns dos outros para existir, tapamos essa percepção com alguma alegoria que sustente nosso insustentável estilo de vida, marcado por uma incessante produção de resíduos. Isso mesmo: resíduos, pois talvez o melhor espelho da contemporaneidade seja o lixo material e imaterial que produz. Enquanto turbinamos festas e carros com refrões absolutamente imbecis, também entulhamos planeta adentro o lixo que provém da nossa busca desenfreada pelo prazer. 

Não que seja errado, já que todos merecem e precisam gozar. Mas quando o prazer encontra eco em uma justificativa para se fazer corpo, existe algo estranho acontecendo. É aquela: medito para trabalhar melhor, caminho para regularizar a pulsação, bebo para relaxar. Por quê?! Por que não basta o ato pelo ato, livre dos penduricalhos da argumentação? Isso nos priva de olhar para fora, retira-nos a possibilidade de encontros e nos joga em um círculo cada vez mais restrito, como se fôssemos doidos que alucinam ao redor de totens absurdos criados por um jogo de símbolos que nubla a realidade. É preciso que nos deixemos levar. É preciso maior risco, rabisco, visto que do contrário jamais teremos a bela sensação de perder o chão e então nos sentirmos momentaneamente livres de tudo. Claro que angústia virá. Mas sem essa perversão do que é tachado como “normal”, o sabor da vida vira uma salada de chuchu – só tem gosto por conta do vinagre e do azeite de oliva. 

Por isso relembrar é complicado. Quando você conscientiza certas coisas, adquire o senso do erro e do acerto, visualizando em quem foi o mar de equívocos que resultou em quem é. No entremeio, muitos sorrisos e alegrias, havemos de convir. Mas aparentemente, somente aprendemos com a dor e com a culpa, o que talvez se deva a uma moralidade judaico-cristã que nos atinge do berço. Explico: cremos que a dor é que ensina, a punição é que purga, a doença é que cura – e isso está errado. Como mudar, não sei. Mas sei que existe algo de podre no Reino da Dinamarca, como diria Hamlet. 

Penso, enfim, na esteira de Montaigne, que filosofar é aprender a morrer: somente chegamos a alguma calma e serenidade quando nos acercamos completamente da nossa condição finita e da nossa solidão cósmica. Mais: isso nos remete ao outro, àquele anônimo da fila do banco, e nos impinge o senso de que estamos juntos nessa estrada, dependendo nosso rumo do reconhecimento da nossa comunhão de destinos. Sim: o tempo destrói tudo, como grita o letreiro de “Irreversível” de Gaspar Noé quando dos créditos finais do filme. Mas se promove a implosão de tudo, também relega instrumentos para a construção de sentidos fraternos a partir dessa implosão. 

Precisamos abdicar da lógica amigo/inimigo, dentro/fora, nacional/estrangeiro, estranho/normal. Tudo faz parte de uma teia imensa na qual surfarmos em co-responsabilidades de impossível renúncia. Cada pequeno ato que cometemos afeta o sangue dos outros, como certa vez constatou Simone de Beauvoir – e a nitidez desse horizonte é que pode nos transformar em melhores seres humanos, percebendo que embora a existência, assim como o amor, seja tão desprovida de significado último quanto uma carta do Pateta para o Pernalonga, existe algo muito maior que nos une e nos incute o dever de encarar todo e qualquer indivíduo como nosso igual. Isso é difícil? É. Tenho esperança de uma mudança moral e ética universal em curto espaço de tempo? Não. Mas tais constatações não me retiram a voz. Afinal, não quero que no futuro recorde do meu hoje e visualize em minha face aquele tecladista de churrascaria que certa vez me causou congestão em uma viagem para Porto Alegre. 

Se o mundo não acabar, claro.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

GABRIELA, A PORRADA E O TATU-BOLA: A HISTÓRIA DE UM CUSPE.

Na noite de 4 de outubro de 2012, a manifestação denominada Defesa Pública da Alegria terminou de maneira lamentável em Porto Alegre. De posse do argumento de que a Prefeitura da Capital, sob o comando do Prefeito José Fortunati, realiza a privatização de espaços públicos, como o Largo Glênio Peres e o Auditório Araújo Vianna, ambos patrocinados pela Coca-Cola, o protesto iniciou na Praça Montevidéu de forma pacífica e animada, reunindo centenas de pessoas. Em torno das 22h30min, os ativistas se deslocaram ao Largo Glênio Peres, em frente ao Mercado Público, para promover manifestações junto ao boneco que representa o mascote da Copa do Mundo de 2014 – o afamado Tatu-Bola. 

Quando essa movimentação começou, a Brigada Militar estava parada ao redor do boneco, aparentemente inerte frente à caminhada da multidão. Tendo em conta diversos relatos, os policiais permitiram que várias pessoas ultrapassassem a grade que protegia o mascote, o que, mediante a exaltação de ânimos, deflagrou o que apenas pode ser descrito como uma “batalha campal”. Sessenta policiais militares do Pelotão de Operações Especiais (POE) do 9° Batalhão da Polícia Militar, além de tropas da Guarda Municipal, foram deslocados ao local. Para conter o avanço da multidão, foram utilizadas bombas de gás lacrimogêneo e tiros com munição não-letal. Como resultado, ao menos vinte manifestantes restaram feridos e outros oito foram detidos pela Brigada Militar.

Certamente a necessidade de repressão da multidão por parte dos agentes públicos foi o descontrole de alguns cidadãos, os quais transformaram uma manifestação inicialmente pacífica em um ato distante dos seus propósitos iniciais. Mas nada justifica os excessos cometidos pelos policiais com relação às pessoas presentes no local. Exemplo claro desses excessos é o que aconteceu com Gabriela Kliemann Dias, a qual residiu em Santo Ângelo por quatro anos. Atualmente morando em Porto Alegre, Gabriela é estudante de jornalismo e colaboradora do Facool, empresa que atua no ramo. Com a intenção de fazer a cobertura jornalística da manifestação, Gabriela foi agredida por três policiais enquanto filmava a ação com um telefone celular. O vídeo que comprova a agressão aos 3min de gravação pode ser acessado no YouTube (http://www.youtube.com/watch?v=4N6L8pXlR3g&feature=youtu.be), considerando-se que o mesmo já se encontra em posse da Secretaria de Segurança Pública do Estado e do Ministério Público.

“Eu fui gravar uma guria sendo espancada no chão por um policial e acabei sendo detida, me jogaram no chão, pegaram meu celular e quando eu disse que não era vagabunda (eles estavam me chamando não só disso) e afirmei que era estudante de jornalismo, resolveram me algemar e me levar pra delegacia”, relata Gabriela, que afirma também que os policiais colocaram um cassetete no seu pescoço e tentaram de toda forma arrancar seu telefone celular. “Até que eu comecei a apanhar, pisaram no meu seio e eu entreguei o celular. No caminho, após ser detida, um deles estava quase quebrando meu braço e eu pedia pra ele parar e ele dizia: ‘vagabunda, eu vou quebrar esse teu bracinho’”. Como se percebeu nos dias posteriores à manifestação, a cobertura da imprensa foi massivamente no intuito de “criminalizar” os ativistas. Porém, mesmo que se admita que vários manifestantes tiveram condutas reprováveis, excessos cometidos pelos agentes policiais presentes no local merecem ampla investigação.

À parte essas considerações, a problemática que envolve o caso me parece clara, pois quando um jornalista é agredido, há um cuspe na cara da opinião pública e da democracia. Além disso, quando forças policiais se reúnem em torno de um boneco inflável, como se tivessem intenções de “protegê-lo”, há evidências de que vivemos em uma sociedade esquizofrênica. O preocupante, contudo, é que quando Gabriela, a porrada e o Tatu-Bola são fatores que compõe o mesmo trinômio, percebemos claramente que a ascensão do conservadorismo brasileiro é voz ativa na construção de um Estado que está anos-luz distante das disposições republicanas contidas na Constituição Federal. Diante de tamanhas bizarrices, uma última: escrevo tais linhas em 2012. Convenhamos que as mesmas palavras, com algumas poucas alterações, cairiam perfeitamente aos anos de 1969 a 1974, período no qual o Governo Médici mergulhou o país em um dos momentos mais duros do Regime Militar. O que espero é que este texto não seja um sintoma ou talvez uma espécie de “premonição” quanto aos dias que virão. Do contrário, eu, Gabriela e milhões de brasileiros enfim conheceremos o pau de arara.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

SETE BREVES CONSIDERAÇÕES PARA UM ANO ELEITORAL: PARTE FINAL.

O que se comprovou com o pleito do último domingo é que um senso conservador impera no Brasil. “Mas conservar o quê?”, perguntará algum leitor. Simples: conservar o cenário político brasileiro da forma como sempre se configurou. Enquanto o eleitor aceitar esse coronelismo velado que perpassa todos os veios da República, absolutamente nada se modificará. Persistirá, ao contrário, a perspectiva de que o Estado, em sua composição política, existe apenas para favorecer interesses privados completamente distantes de preocupações coletivas.
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Algo que se percebeu claramente no transcorrer da campanha eleitoral foi a “infantilização do voto”. Ou seja: o eleitor confia que determinado candidato resolverá todos os seus problemas. É a consciência do filho que deposita todas as suas expectativas em seu genitor. Perdurando essa noção, o Estado brasileiro permanecerá como “um grande pai”, jamais organizado a partir de uma tônica racional, relegando às traças qualquer lógica em prol da pura politicagem.
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O alarde em função da Lei da Ficha Limpa ocorrido nos últimos meses teve sua razão de ser. Embora alguns não tenham percebido, a Lei da Ficha Limpa serve para proteger o eleitor dele mesmo. Funciona assim: se determinado candidato detém “ficha suja”, não pode constar na urna, sendo que, por consequência, não pode receber o voto do eleitor – se pudesse, receberia. Como bem falou David Coimbra em coluna publicada semana passada na Zero Hora, a Lei da Ficha Limpa serve para que reconheçamos que não passamos de uns abobados. O absurdo é que isso é extremamente necessário.
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Não concordo com a expressão que chama as eleições de “festa da democracia”. Levada ao pé da letra, traduz um pensamento comum brasileiro que julga que o único momento de se fazer política é em ano eleitoral. Na esteira dessa percepção, visões críticas e tentativas de participação na organização do Estado acabam sufocadas, subjugadas por uma massa populacional que não deseja ser nada mais que “pelego” de alguns poucos mandatários. O brasileiro, em sentido geral, aprecia sua semelhança a um “boi de canga”.
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A composição das prefeituras, mesmo que muitos municípios importantes tenham levado seu pleito para o segundo turno, demonstrou, em âmbito amplo, um “retorno da direita” – reconhecendo-se, porém, a “permanência da esquerda” (se é que essas palavras trazem algum sentido atualmente). Parece que alguns partidos, afastados há anos do poder, fizeram das tripas coração para retornar às cadeiras dos Executivos Municipais. O problema é que esse processo trouxe consigo ramagens de interesses conhecidos por todos, os quais, anos atrás, levaram diversas cidades ao limbo da estagnação desenvolvimentista. O que fica nítido é que o brasileiro é um ser imediatista acometido de um esquecimento crônico. 
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Ainda que muitos discordem, são nas Câmaras de Vereadores que crescem as novas elites políticas nacionais. Trata-se do seu útero. O que se observou é que pouca modificação houve em suas composições, mesmo que seja impossível nesse momento traçar um diagnóstico que perpasse todos os municípios brasileiros. O mais triste nesse sentido é que a “infantilização do voto” se fez presente também aqui: se os prefeitos são vistos como “pais”, os vereadores são vistos como “padrinhos”. O preocupante é que essa atitude não difere em nada daquela dos “mensaleiros” que estão sendo julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Cada vez que um eleitor vende ou troca seu voto, surge um novo corrupto no Brasil.
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Em política, na ausência de enxadas utilizamos colheres. O que não vale é dizer que um unicórnio puxará o arado. Em tempo de campanha, isso até funciona. Mas a “Terra do Nunca” não passa de fantasia, ainda que o ser humano tenha a tendência a confiar mais na “magia” que na “realidade”. À parte isso, independente de siglas, desejo inteligência e comprometimento para todos os candidatos eleitos. Se a partir do dia primeiro de janeiro alguns colocarão em curso seus objetivos de campanha, outros colocarão na estrada sua vigilância e atenção com relação a tudo quanto será dito e principalmente feito: assim esperando, a vida segue.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Carta aberta aos(às) eleitores(as) de Santo Ângelo.

Senhores(as) eleitores(as).

Como algum(a) dos(as) senhores(as) certamente percebeu, na semana passada utilizei este espaço para publicar uma “carta aberta aos(às) candidatos(as) a prefeito e vereador(a) de Santo Ângelo”. Por conta de um desdobramento lógico, nesta semana publicarei outra “carta aberta”, desta vez direcionada aos(às) senhores(as) eleitores(as). Com a intenção de colaborar com o pleito que ocorrerá no próximo domingo, tratarei das principais funções do prefeito, das principais funções dos(as) vereadores(as) e, derradeiramente, abordarei alguns pontos que, penso, não servem de subsídios para a definição do seu voto. Dessa maneira, ciente do meu mirrado papel, seguem algumas humildes, apartidárias e idealistas considerações.

Em primeiro lugar, trato do prefeito. Dentre as principais funções do prefeito, que é o chefe do Poder Executivo Municipal, não se encontra o favorecimento de certos empresários em detrimento dos demais, não se encontra um “empurrão” para que qualquer pessoa seja favorecida em algum concurso público e não se encontra a concordância com ilegalidades praticadas por servidores(as) públicos(as) municipais, estaduais e federais. De outra forma, encontra-se o governo da cidade de forma conjunta com os(as) vereadores(as), a representação do povo na busca por melhorias, a reivindicação de convênios, benefícios e auxílios para o município, a apresentação de projetos de lei à Câmara Municipal, a sanção, a promulgação, o veto e a publicação de leis apresentadas pela Câmara, a intermediação política com outras esferas do poder, o zelo pela limpeza da cidade, promovendo a manutenção de postos de saúde, escolas e creches, bem como a administração e a aplicação de impostos (IPTU, IPVA, ITU) visando o benefício do município.

Em segundo lugar, trato dos(as) vereadores(as). Dentre as principais funções dos(as) vereadores(as), que são os(as) representantes do Poder Legislativo Municipal, não se encontra o pagamento de jantares, festas de aniversário ou de casamento, não se encontra a promessa de cargos ou Secretarias mediante pura manipulação eleitoreira e não se encontra o agendamento de consultas médicas para as pessoas mais necessitadas. De outra forma, encontra-se a feitura de leis que digam de interesses locais, a elaboração de decretos legislativos, resoluções, indicações, pareceres ou requerimentos, a fiscalização das contas do Poder Executivo Municipal, o zelo pelo bom uso do dinheiro público mediante a aprovação da Lei de Diretriz Orçamentária elaborada a partir de uma análise profunda do Plano Diretor do Município, bem como a representação da população local com a promoção de seminários, debates e audiências públicas que visem a conscientização cidadã fincada em parâmetros republicanos e democráticos com a intenção de que sua vereança sirva como caixa de ressonância aos interesses do município.

Em terceiro lugar, trato da sua escolha, senhor(a) eleitor(a). Assim, peço que não deixe que a promessa de uma escrituração de terreno defina seu voto, peço que não deixe que a promessa de um CC defina seu voto, peço que não deixe que uma cesta básica ou a “doação” de obras universitárias defina seu voto, peço que não deixe que pesquisas que apontam tal ou qual candidato para a “vitória” definam seu voto, peço que não deixe que a “cegueira ideológica” impeça que seu voto vá contra o partido pelo qual o(a) senhor(a) tem apreço, peço que não deixe que bom-mocismos feitos de sorrisos e tapinhas nas costas definam seu voto, peço que não deixe que a “ética da boa vizinhança” defina seu voto e peço que não deixe que o temor pelo seu emprego defina seu voto.

Pelo contrário, peço que vote de maneira consciente, peço que faça com que sua decisão não seja designada pela emoção ou pela rasa empatia, mas seja, de outro modo, definida pela racionalidade, pela honestidade e pela obrigação que o(a) senhor(a) tem de demonstrar sua preferência política não em nome dos seus interesses pessoais, mas em nome da sua cidade, depositando seu voto no candidato que julgar mais preparado para o exercício das funções de prefeito e vereador(a). Acima de tudo, senhor(a) eleitor(a), lembre-se que só existem corruptos se existirem corruptores – ou seja: a responsabilidade pela dignidade política do Brasil não é sua ou minha, mas é nossa.

Contando com seu comprometimento e coragem,

Eduardo Matzembacher Frizzo.

Santo Ângelo (RS), 4 de outubro de 2012.

P.S.: Tanto o texto anterior quanto este, foram publicados no Jornal das Missões, de Santo Ângelo (RS), com o intuito de contribuir com o pleito local. Embora algumas das suas linhas tragam considerações genéricas, foram postados aqui sem maiores pretensões.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Carta aberta aos(às) candidatos(as) a prefeito e vereador(a) de Santo Ângelo.

Senhores(as) candidatos(as).

Sou um eleitor como outro qualquer. Em função dos direitos políticos que trago, meu voto será contabilizado da seguinte forma: 01 (um) – e nada mais. Mas tenho de admitir que o fato de escrever para um jornal de grande circulação no município e na região, responsabiliza-me moralmente no sentido de trazer para o(a) leitor(a) contribuições minimamente válidas ao seu cotidiano. Caso algum(a) dos(as) senhores(as) acompanhe minha modesta e recente coluna neste diário, deve ter ciência que trato de assuntos diversos, abrangendo, como diria Douglas Adams, “a vida, o Universo e tudo mais”. Hoje, porém, decidi, consciente do meu ínfimo papel, fazer alguns pedidos aos(às) caríssimos(as) senhores(as) candidatos(as). Infelizmente não poderei embasar legal e logicamente meus pedidos em função do curto espaço destinado a este texto. Da mesma maneira, não citarei nomes e me restrinjo, ciente das minhas limitações e pleno de respeito apartidário, aos termos que seguem.

Em primeiro lugar, trato das promessas. Assim, peço que não prometam a escrituração de terrenos em área de proteção permanente às margens do Itaquarinchim, peço que não prometam a extinção de todos os CCs da Prefeitura e da Câmara de Vereadores, peço que não prometam a distribuição de mais de setecentas bolsas integrais e parciais para universitários do município, peço que não prometam a doação de material de construção para toda e qualquer pessoa que o requisitar à respectiva Secretaria, peço que não prometam isenções ou absurdidades no que diz de impostos essenciais à vida financeira do município, peço que não prometam cargos a eleitores(as) com a simples intenção de captar seu voto e peço que não favoreçam quaisquer correntes religiosas com relação ao que diz da realização de eventos e demais festividades na cidade. Com relação às promessas, os(as) senhores(as) candidatos(as) haverão de concordar que os(as) eleitores(as) de hoje são melhor informados(as) que os(as) eleitores(as) de ontem – e que, compulsando mesmo fatores legais que possam entrar em questão, muitas dessas “obrigações assumidas para o futuro” são basicamente de impossível cumprimento.

Em segundo lugar, trato da campanha. Assim, peço que não comprem votos por meio de presentes na forma de obras universitárias, peço que não procedam com o pagamento de festas de casamento e de aniversário, peço que não distribuam panfletos anônimos difamando determinados(as) candidatos(as), peço que não paguem R$ 400,00 para um(a) morador(a) instalar material de campanha em frente à sua residência, peço que não financiem reconstruções de moradias atingidas pelo recente temporal que atingiu a região, peço que não digam que um(a) eleitor(a) perderá seu benefício assistencial concedido pelo INSS caso o(a) senhor(a) não venha a se eleger, peço que não insuflem ânimos violentos em seus cabos eleitorais, peço que na noite que antecederá as eleições não impeçam a livre circulação de pessoas em determinados bairros e peço que mantenham a campanha que se dará nos próximos dias em um nível civilizado, racional e cortês, respeitando a oposição e rebatendo argumentos com calma e coesão. Com relação à campanha, os(as) senhores(as) candidatos(as) haverão de concordar que crimes são crimes e devem ser interpretados como tais – e que, embora o Brasil seja um país essencialmente patrimonialista e clientelista com respingos coronelistas, os(as) senhores(as) detém o dever de reverter esse cenário em prol do amadurecimento da democracia brasileira.

Em terceiro lugar, trato do amanhã. Assim, peço que visualizem os problemas da cidade não “jogando” a responsabilidade para administrações passadas ou atuais, mas buscando soluções que não estejam puramente relacionadas a interesses eleitorais ou picuinhas entre grupos que de forma alguma atentam aos interesses da coletividade. Peço também que, caso venham a assumir o cargo que almejam, os(as) senhores(as) se comprometam com os princípios republicanos afeitos ao respeito à dignidade da pessoa humana e condicionados principalmente pela fraternidade, pela igualdade, pela liberdade, pela humanidade e pela diferença. Peço ainda que tenham perfeita noção de que suas concepções morais de qualquer natureza, normalmente não estão “casadas” com os anseios coletivos – sendo que são estes anseios e desejos que os(as) senhores(as) representarão caso venham a se eleger.

Tendo em conta tudo quanto falei acima, senhores(as) candidatos(as), respeitosamente peço hombridade, civilidade, humildade, inteligência, compromisso e honestidade – qualidades humanas que existem independentes de partido, instrução, credo, cor, sexo ou preferências futebolísticas.

Contando com sua compreensão e confiança,

Eduardo Matzembacher Frizzo.

Santo Ângelo (RS), 27 de setembro de 2012.

domingo, 23 de setembro de 2012

UM CANTO TODO FEITO DE MUDANÇAS.

Semana Farroupilha. Rio Grande do Sul imerso em comemorações. Emoções afloradas, bailes aqui e acolá, seres com pilchas cheirando à naftalina e escolas levando alunos para cafés campeiros nos CTGs. Acho tudo isso muito bonito. Condiz com certa unidade cultural que habita a terra sulina. Mas ao mesmo tempo, acho indignas quaisquer atitudes tradicionalistas puristas. Isto é: sujeito acha que apenas uma e só uma vertente cultural detém valor. Trata-se de uma postura totalmente arcaica, preconceituosa e nada afeita aos tempos atuais. Causa, inclusive, uma opressão moral e atitudinal exposta claramente pelo conservadorismo gaúcho que se soma a determinado bairrismo caolho e sem razão que carregamos.

Fato é, porém, que já tentei enveredar pela cena musical como compositor nativista. Escrevi algumas letras e compus canções, sempre em parceria com meu amigo Antonio Fontoura. Pensando sobre isso, é que hoje decidi publicizar um escrito que me vazou há tempos e que ainda está parcamente musicado como uma milonga. Em suas linhas, expressei minha convicção de que inexistem parâmetros certos ou errados em se tratando de manifestações culturais. Também evidenciei que não me cabe, como homem da cidade, cantar coisas de uma realidade campesina que desconheço totalmente. Por fim, busquei uma vertente poética afeita à necessidade de união, fraternidade e convivência pacífica entre diferentes, tendo em conta nossa inevitável solidão cósmica e a perspectiva certa e inafastável da nossa finitude. Penso que apenas assim poderemos atingir um novo nível de desenvolvimento humano, desapegado de localismos que nada nos dizem afora seu teor anacrônico – mas conectado com uma noção planetária envolta em um senso de unidade global.

Por esses motivos, consistindo em uma modesta e descompromissada homenagem à Semana Farroupilha, arraigada ao significado pessoal que visualizo no dia 20 de setembro, segue “Um canto todo feito de mudanças”, letra que escrevi com base no ideário que resumidamente expus acima, o qual traz como única vereda um sentido profundo de liberdade e companheirismo existencial.

Não quero mais cantar essa saudade / Das coisas que não pude conhecer
Não quero mais cantar essas paisagens / Que só a imaginação pôde trazer
Não quero mais cantar só por um chão / Se não há uma bandeira que nos une
Nem quero mais cantar o coração / Que faz a minha vida mas me pune
Não canto mais por algo ou por alguém / Porque sei da fraqueza da minha voz
Só canto porque vejo bem além / Alguma ideia que une a todos nós

Por isso que meu canto é de futuros / É feito de amanhãs e esperanças
Por isso que meu canto é pela união / Da terra e do homem pra mudanças
Distantes de passados ou presentes / Que cortam essa noite do agora
Mas relampejam antes do poente / As mãos que não cansaram da demora

Sabendo do meu canto sei que devo / Cantar não só respeito ou palavras
Que morrem sem saber que a cada rima / Se tornam nada mais que umas escravas
Meu canto não pede pra ser medido / Por aqueles que julgam a canção
Porque todo seu corpo é tecido / Com notas livres de toda opressão
Meu canto se quer som não só da voz / Que pra agradar só canta o que convém
Porque meu canto vai bem mais além / De toda solidão que há em nós

Por isso que meu canto é de futuros / É feito de amanhãs e esperanças
Por isso que meu canto é pela união / Da terra e do homem pra mudanças
Distantes de passados ou presentes / Que cortam essa noite do agora
Mas relampejam antes do poente / As mãos que não cansaram da demora

Por uma voz que não seja só uma / Mas seja a voz de todas as esperanças
Da terra e do homem pela união / De um canto todo feito de mudanças

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

RUSSOMANNO E O "RELIGIOSISMO" CONTEMPORÂNEO.

A onda de "religiosismo" atual pode ser vista como um reflexo antagônico do enorme desenvolvimento na área técnico-científica presenciado nas últimas décadas. Na tentativa de sonegar evidências, por absoluto e puro temor as massas rumam na direção do "desconhecido", do "místico", o qual não se manifesta apenas em tantas facções neo-pentecostais pelas quais cruzamos de esquina em esquina, mas também na propagação absurda de "Teorias da Conspiração" e demais "espiritualismos" encapsulados nos best-sellers do momento. 

Além disso, quando há o reconhecimento nítido de que tamanhos avanços morais, éticos e jurídicos tidos nos últimos trezentos anos advém da propagação de uma cultura laica e secularista, também há a percepção de que, sendo secularista, essa cultura varia enquanto espaço-tempo, não possibilitando abertura para demandas comportamentais que adjudiquem um viés inquebrantável e inquisitorial por se tratar de uma posição laica. Como vivemos em uma realidade marcada por preconceitos crescentes, algo palpável na contemporânea postura dos países europeus quanto aos estrangeiros, pode-se afirmar igualmente que essa reação é simetricamente negativa em relação ao transcorrer do desenvolvimento histórico, sedimentado pela tentativa de aceitação do outro enquanto igual.

Para que possamos perceber outras manifestações da tendência que cito, basta observar a crescente preferência por Celso Russomanno na corrida pela prefeitura de São Paulo. Representante do PRB (Partido Republicano Brasileiro), o qual consiste no braço político da Igreja Universal do Reino de Deus, Russomanno afirma, dentre outras declarações, que deseja "uma igreja em cada esquina da cidade". Defensor da PEC 99/11 (a qual modificaria o art. 103 da CF/88, possibilitando que associações religiosas tenham capacidade para propor ações de constitucionalidade e inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal), Russomanno inclusive consiste em figura pública brasileira que detém interesses casados com o atual discurso de alguns baluartes do Partido Republicano dos EUA (os quais defendem a extinção do ensino evolucionista nas escolas públicas, sendo este substituído, ipsis literis, pelo ensino criacionista). 

Dentre as várias conclusões que podem ser retiradas de todo esse cenário, a principal quem sabe esteja para a necessidade de permanecermos vigilantes. A igualdade entre os cidadãos apenas se perpetua com a expansão das liberdades, a qual, por sua vez, dá margem ao surgimento da diferença como sua própria condição. Trata-se de um palco teórico/prático complexo que talvez possa ser parcamente resumido da seguinte maneira: quanto mais liberdade detenho, mais posso afirmar minha diferença, considerando-se que quanto mais pessoas detiverem a liberdade que detenho, “mais iguais” nos sentiremos na afirmação dessa diferença, dessa singularidade. Assim se nota que atrelar o futuro jurídico-político de um país a concepções dogmáticas, na contramão de um pensamento de base iluminista que modificou as relações sociais no transcorrer dos últimos séculos, trata-se de um regresso tremendo, visto que daria margem para a transmutação de concepções morais (por natureza, individuais) em concepções éticas e jurídicas (por natureza, coletivas), o que de forma alguma é postura republicana. 

O problema se acentua quando percebemos que grande parte da população, afetada por um bom-mocismo tacanho, por um politicamente correto furtado de auto-crítica, por um anti-intelectualismo arrogante, segue líderes e tendências da estirpe, apenas denotando a necessidade cada vez maior de discussões sérias e profundas com relação a temáticas do gênero. Não que estejamos à beira de um novo Estado Teocrático. Compulsando a história, seria algo que muito dificilmente viria a ressurgir. Mas que há a possibilidade de uma transmutação brusca de valores individuais conservadores em mecanismos de controle social totalmente excludentes, totalmente alheios à diversidade, isso é inegável.

domingo, 16 de setembro de 2012

SETE BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE NADA DEMAIS: PARTE PRIMEIRA.

Uma sociedade se torna bizarra a partir do momento em que pensa a si mesma como normal. Esse é um dos grandes males do bom-mocismo e do anti-intelectualismo brasileiros. Aos olhos da maioria, você só tem valor se é politicamente correto ou se aponta soluções. Mas as pessoas esquecem que a vida é uma novela mexicana escrita por um Shakespeare disléxico – e que todo “destino” é uma rodoviária disfarçada de asilo. Por isso é que a cada dia que passa me torno mais anarco-punk niilista.
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O medo vendido e revendido é o único produto que sustenta o sistema atual. Risco de assalto. Risco de doenças. Risco financeiro. Risco de perder a mulher. Risco de sofrer mais riscos. Dá pra entender essa onda de misticismo besta só olhando para o fator “risco”. Quando a situação fica feia, a primeira coisa que buscamos são fantasmas: fantasmas do fim do mundo, dos ETs ou da tal da “moralidade”.
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Pessoal está atrás de bons salários, não de bons empregos. Poucos percebem o fato de que trabalhar é vender seu tempo, vender sua vida. Quando os objetivos se direcionam somente para a possibilidade de consumo, confundindo suas veias com possíveis felicidades, há um desgaste tremendo da potencialidade humana. Razões para o comportamento geral andar nessas plagas? A principal é o medo: esse monstro metafísico que nos trava a liberdade e a consciência da liberdade.
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Ter foco? Privilégio das lanternas. Ter “vida pessoal”, “vida profissional”, “vida amorosa” ou “vida sexual”? Trata-se de algo que certamente tem a ver com aqueles arquivos divididos em mil gavetas. Coisa mais pequena, mais reducionista e precária, essa economização da existência, como se tudo pudesse ser expresso em manuais, em gráficos, em delimitações. Bom mesmo é aceitar o caos – e perceber que por mais que queiramos, o vento não possui nenhum esqueleto que diga seu início e seu fim.
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Se considerarmos que escolhas são necessárias, a vida não é feita de escolhas, mas da necessidade de escolher. Esse é o principal motor das nossas inquietações, acionado pelo desamparo de saber que inexistem verdades absolutas e que toda escolha, ao fim e ao fundo, consiste também em uma resignação. Há como ser diferente? De modo algum. Somente assim pinceladas de felicidade podem atingir nossos olhos e nossa boca.
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Falar em “destino” é negar a possibilidade humana de mudança. Mais ainda, é negar o fato de que acima de tudo, embora constantemente não queiramos admitir, estamos, sempre e cada vez mais, completamente condenados à liberdade. Essa é a causa da maior parte dos nossos problemas, mas também de toda e qualquer alegria que possamos vir a ter.
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Falta-nos menos moral e mais ética. Falta-nos menos deuses e mais perguntas, menos “humanos direitos” e mais direitos humanos. Falta-nos menos sorrisos e mais amigos, mais abraços e menos tapinhas nas costas. Falta-nos mais “por favor” e “obrigado”, sem obrigações. Falta-nos mais vitalidade e menos medo, menos idiocracia e mais sabedoria, menos amor no Dia dos Namorados e mais amor na procura pelo amor. Falta-nos deixar de viver na angústia da solidão e no medo da companhia. Falta-nos, enfim, mais reflexão e sensibilidade. Mas fundamentalmente, falta-nos menos pessoas que se assemelham a salsichas enlatadas e mais pessoas que sintam profundamente o significado da palavra “liberdade”.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

POEMINHA DE FLORAÇÃO.

Vivemos uma primavera antecipada. A floração começou. “In Bloom”, diria Kurt Cobain. Basta circular pela cidade pra perceber. Sem contar o calor que fez em agosto, coisa estranhíssima. Onde já se viu trinta graus em pleno inverno? Conversando com pessoas dos seus sessenta, setenta anos, descobri que realmente foi uma raridade. Há décadas algo assim não ocorria. Desconheço as causas, porém. Quem sabe, o aquecimento global. Talvez, pura birra do tempo. Ou uma sacanagem de São Pedro.

Mas o que tenho percebido, é que existe um desânimo geral no ar. Uma espécie de “semi-depressão coletiva”. Não tenho credenciais médicas para qualquer afirmação embasada, mas converso com muita gente todos os dias e a sensação é palpável. Minha amiga Ana Lara Tondo disse que deve ser algo no ar ou na água. Já minha amiga Kátia Goretti, falou que é simples questão atmosférica, fruto da estação. Francamente, não faço ideia. Mas que se trata de algo evidente, isso é claro.

Fato é que decidi pensar no assunto e cheguei a uma conclusão: mais provável é que seja culpa da rinite alérgica. Oito entre dez pessoas sofrem disso. Nariz escorrendo, olhos coçando e espirros pra todo lado. Uma beleza! Manter a concentração no trabalho ou nos estudos, torna-se sofrível nessa época. Isso que nem levei em conta a constatação de que, se o inverno está assim, imagina o calor que fará no verão. Contas de luz virão estratosféricas e seres que padecem de pressão baixa desmaiarão pelos cantos.

Mas que nada. Dentre ranhos e lágrimas, a vida seguirá e o ano, quando menos esperarmos, acabará. Ou será que não chega a isso? Dizem os Maias e toda aquela gente que se interessa por baboseiras místicas ou pseudo-científicas, que dia 21 de dezembro de 2012 é a data limite de tudo. Como um iogurte com prazo de validade estourado, nosso planeta deixará de ser habitável. Pode? Não duvido de nada. Mas enquanto isso não acontece, sigo respirando gás carbônico, brabo com o novo acordo ortográfico.

Por falar nele, pense comigo: qual o sentido de escrever “ideia” sem acento? Tudo bem que haja todo um fundamento gramatical pra isso. Mas a palavra “ideia” perdeu seu caráter de “novidade” ao ser grafada sem acento. Resumindo: foi-se ralo abaixo o “plim!” da lâmpada do Pato Donald representado pelo acento agudo. Os caras que fizeram essas novas regras deveriam ter um pouco de senso estético. Mais leitura de Haroldo de Campos e Décio Pignatari poderia evitar impropérios formais do tipo.

De qualquer modo, teremos que nos adaptar a tudo isso. Mas será que devemos nos adaptar ao desânimo? Óbvio que não. Seria entregar os pontos e aceitar o cárcere das sensações. Se “filosofar é aprender a morrer”, como disse Montaigne, pensar sobre nossa condição, seja ela qual for, é segurar as rédeas da sua superação. Funciona como uma sessão psicanalítica de si para si, na qual você delimita os quadrantes da sua existência, procura alguma racionalização possível e acha saídas para este labirinto construído pela bioquímica cerebral.

Então negócio é ouvir Kaiser Chiefs e gritar: “adelante!”. O desânimo passará, a primavera passará, o próximo verão passará, outro inverno virá e novamente poderemos tomar nosso vinho tinto seco sem se preocupar com o calor. Como diz o Eclesiastes em seu capítulo 1, versículo 5: “O sol se levanta, o sol se põe, voltando depressa para o lugar de onde novamente se levantará”. Mas pra encerrar, em homenagem aos companheiros alérgicos, nunca esquecendo dos órgãos públicos que nos impedem de podar árvores sem uma rubrica à Kafka, deixo meu “Poeminha de Floração”:

Ah!, a primavera! / Uma estação feliz!
Na qual você espirra pólen / E passa assoando o nariz!

Ah!, a primavera! / Como me deixa inspirado!
Ao transpirar corticoides / E me sentir inchado!

Ah!, a primavera / Prelúdio de um quente verão!
Bom pra gente desmaiar / De tanto que baixa a pressão!

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

"O RETORNO DE SATURNO", O LIQUIDIFICADOR, O PNEU E O "LOUCO DO BADANHA" (OU "DA ORIGEM DAS SUPERSTIÇÕES").

Gostaria de ser supersticioso. Decepção: não sou. Não consigo entender a razão pela qual soprar o gargalo de uma garrafa vazia traz maus agouros, por exemplo. Mas certas coisas dão o que pensar. Se somar os acontecimentos que relatarei ao fato de que, com recém completos vinte e oito anos, acabei de entrar no que os astrólogos chamam de “O Retorno de Saturno”, algo certamente surgirá. O quê? Uma dedução totalmente racional ou uma profecia ao estilo “2012: esqueçam suas malas”? Não faço ideia. Por isso, vamos ao ocorrido.

Meados de fevereiro de 2012. Onze e pouco da noite. Encontro dois filmes legais pra assistir. Primeiro: “Reflexões de um Liquidificador”, dirigido por André Klotzel. Roteiro: um liquidificador, após conserto, adquire consciência e passa a questionar sobre a vida e a morte – além de auxiliar uma dona de casa com os “restos” de um assassinato. Segundo: “Rubber”, dirigido por Quentin Dupieux. Enredo: o protagonista é um pneu com poderes telecinéticos e capacidade de matar o que enxergar (?!) pela frente. Até aí, ok. Penso: “Legal!, revolta dos objetos!”.

Mas lá pela metade do segundo filme, ouço uma gritaria na avenida. Espio. Vejo um sujeito alto, gordo, careca, roupas esfarrapadas de fugitivo de manicômio do século XIX, juntando gravetos caídos de árvores magricelas enquanto berra: “Lenha! Lenha! Olha a lenha do Badanha!”. (Minha atenção muda pra TV: é uma moça que teve a cabeça explodida pelo poder do pneu.) De canto, observo o cara dos gravetos – que percebe meu olhar e para. Sinto-me vigiado. Fecho a porta da sacada e sento. Estou meio assombrado.

Rita Lee me acalma: “Ah! São coisas da vida!”. Marcia Tiburi me assalta: “os mendigos, moradores de rua e loucos representam o inconsciente das cidades”. Dou uma risada em colchete. Um gole d’água e o filme chega ao final: destroçado o pneu, seu “espírito” encarna em um triciclo e ruma para Hollywood. “Talvez a ausência de sentido explique quase tudo nessa vida”, falo sozinho ao espelho quando me preparo pra dormir.

“Certo. Mas e aí?!”, pergunta-me o “Leitor Desconhecido” que sempre me indaga quando escrevo qualquer frase. “Aí complica a batatinha!”, respondo sem mais, querendo dar uns sopapos no espectro mental. Mas como não me assusto fácil, traço uma hipótese. Seus fatores: a) “Moer é pensar, pensar é moer”, fala o liquidificador em dada cena; b) “A ausência de razão é o principal elemento de um estilo”, argumenta um policial baleado no prólogo do filme do pneu; c) “Lenha! Lenha! Olha a lenha do Badanha!”, esbraveja alguém na madrugada de Santo Ângelo.

Pois bem. Se “a ausência de razão é o principal elemento de um estilo” (b) e juntar a “lenha do Badanha” (c) consiste em uma tarefa totalmente atrelada à ausência de razão, o que faz do ato um acontecimento estilístico à Buñuel (leia-se: surreal), pensar acerca desse cenário é um exercício de moagem (a) (“moer é pensar, pensar é moer”): qualquer suco daí extraído, quando bebido, terá um sabor tão ou mais estranho que aquelas sensações misteriosas e sem nexo descritas nos rótulos das garrafas de vinho (tipo: “pitangas amendoadas com tonalidades de orvalho primaveril”).

Mas o que esse catatau afirma? Isso: quando o sentido de algo depende da sua ilogicidade, qualquer resquício lógico sabota sua possibilidade de significação. E fecho assim: eu, vinte e oito anos, barba quase feita, calça jeans antiga, camiseta de uma festa de 2009, olho pro teto calvo de claridade e procuro relacionar o barulho da minha respiração com o liquidificador, o pneu, o “Louco do Badanha” e “O Retorno de Saturno”. Daí brota uma conclusão: quando você busca ligações de “A” com “Z”, acreditando que existe um traço de lógica nesse esquema (ainda que o mundo todo teime que não), o que surge é um relato sem pé nem cabeça. De planchaço, dá pra perceber que essa é também a origem das superstições: nossa mania maluca de procurar pêlos na casca do ovo da realidade.

(P.S.: Percebem como tudo na vida nos traz uma lição? Bonito! Mas fico por aqui: hora de ler meu horóscopo – mesmo não sendo supersticioso, é gostoso brincar de místico.)

SINTOMAS DE "TCHÚ" E RAZÕES DE "TCHÁ".

Madrugada de terça pra quarta. Santo Ângelo. RS. Brasil. Universo conhecido. Via-Láctea. Sistema Solar. Planeta Terra. Meu quarto. Leio “Por um Direito Comum” de Mireille Delmas-Marty. Busco subsídios pro meu projeto de doutorado. Mente aguçada, aparvalhada em conceitos, rabisco anotações que não entendo – mas que decifro por uma compreensão misteriosa que me acossa quando me ponho a escrever. Um carro derrapa na rua. Na sequência, tremem os vidros da janela. Ouço uma música. “Eu quero tchú / eu quero tchá / eu quero tchú / tchú, tchú / tchú, tchá”. De início, não entendo aquilo. Entro em transe. Vogais me alucinam. Consoantes me confundem. Sussurro pra esquecer: “fake / fake / fake”. Mas o barulho de uma garrafa espatifando no asfalto me acorda dessa vibe xamanística. E penso: “que coisa é essa?!”.

Então lembro Mario de Andrade, Ezra Pound, James Joyce, Antonin Artaud e outros tantos autores que se utilizaram de sons absolutamente sem nexo para expressar sua estética. Procuro, em razão de uma absoluta vontade que trago de não ser de modo algum preconceituoso, encontrar o “eu lírico” do sujeito que compôs a canção. Largo o refrão no Google. Descubro que os compositores são João Lucas e Marcelo. E mais: inclusive o Neymar (aquele galizé do Santos) faz uma participação na música. Leio o restante da letra. Fala em “biritar”, em “balada”, em “dança sensual” e troços do gênero. A visão que me instiga traduz cowboys do interior de SP mesclada com funkeiros do Rio. Mas o que me intriga é o refrão. O que significa “tchú / tchú / tchú / tchá”?

Após largar de canto Delmas-Marty, ponho-me a traçar uma exegese apurada acerca da letra do “tchú / tchá”. Mas canso. Mas me irrito. Então vejo que Zygmunt Bauman me acena da estante com seu “Amor Líquido”. Reflito: “cara mais chato esse Bauman! tudo líquido! tudo cachaça! tudo cerveja!”. Nesse momento é que no Facebook, uma amiga me envia um link. Do YouTube. Abro a janelinha do Chrome. Ponho os fones. Vejo os artistas: “Valesca Popozuda e MC Catra”. (As mãos suam. Algum temor me encarna.) Nome da composição? “Mama”. Diz a descrição que se trata de um “pagode clássico”. Embora não tenha a menor ideia do que isso significa (recordo de SPC, Fundo de Quintal, Revelação e coisas tais), dou play. Nesse instante, minha análise sócio-cultural das produções artísticas contemporâneas de cunho popular ganha novo norte.

Razões? Vejo críticas e mais críticas direcionadas à Valesca e ao Catra. Vejo pessoas e mais pessoas dizendo que aquilo não é música. Mas falo comigo, batendo na mesa e tomando um largo gole de café: “que coisa é essa?!”. Raciocinem. Roberto Carlos canta (em “Cavalgada”) algo assim: “(...) Vou me agarrar nos seus cabelos / Pra não cair do seu galope / Vou atender aos seus apelos / Antes que o dia nos sufoque”. Todo mundo acha lindo. Romântico. Sparks. Mas falam mal da Valesca e do Catra pela canção “Mama” (cuja letra considero melhor não transcrever – parental advisory: explicit content). Qual o pecado?! O que tais seres fizeram, foi apenas explicitar o conteúdo subliminar de quase toda música que se diz “romântica”. Levando as coisas ao grau extremo (bem extremo!), talvez sejam, futuramente, mesmo tidos como Marcel Duchamp – aquele artista francês que tascou um mictório num museu e chamou de “La Fontaine” (isso em 1917).

No frigir dos ovos, somos todos farinha do mesmo saco, movidos pelo sexo e pelo estômago. Se algo existe entre um e outro, não sei (mas acho possível). Mesmo assim, decido: escreverei um ensaio chamado “Elogio do Funk” (mesmo que “Mama” seja um “pagode clássico”), no qual dissertarei sobre o fato das pessoas ouvirem música com os ossos e não com os ouvidos (razão pela qual existem tantos sons automotivos turbinados por aí). Problem? Não. O único problema é o purismo. Arte virgem não é arte. Quanto mais “depravada” (para os conservadores e para o “bom gosto”) a produção cultural de uma sociedade, mais saudável é essa sociedade. Mas aí é que me vêm à mente o seguinte: por que me senti tão “revoltado” (ui, ui, ui) quando ouvi o “tchú / tchá” seguido dos estilhaços de garrafa (ceva, presumo) na frente da minha casa? O motivo é óbvio e implica em uma decisão: para afastar sintomas de “tchú” e razões de “tchá”, de agora em diante apenas estudarei com algodões nos ouvidos.

"ADO-A-ADO / CADA UM NO SEU QUADRADO".

Tenho pavor de gente espaçosa. Sabe aquele cidadão que você vê uma vez a cada morte de Papa e chega como se fosse o cara mais íntimo que você conhece? Pois é. Falo desse tipo. Pior ainda é gente com fala mansa e jeitinho doce. Pode parecer paranoia, mas sempre tenho a impressão de que se trata de alguém pronto pra sentar uma faca nas minhas costelas. O problema é que a moda é ser assim, sociável. Se você apontar sintomas de pouca afeição pela humanidade, é provável que surja um diagnóstico psíquico nada afetuoso. Mais provável ainda, é que não seja selecionado em qualquer dinâmica de grupo que busque novos funcionários mediante a difícil tarefa de estourar balões à procura de papéis com instruções diversas. Afinal, o mercado quer líderes e líderes precisam estourar balões.

Mas o que significa ser sociável? Trabalhar em grupo? Aceitar opiniões alheias? Dar um Sorriso Colgate pra todo e qualquer banana? Não faço ideia. Mas pessoas muito sociáveis costumam me meter medo. Você nunca sabe o que há na cabeça delas. São como as Mulheres Fruta. Por fora, tudo bacana, tudo ok, tudo very good. Mas vá saber o que se passa na mente das criaturas. Ou será que não passa nada? Não sei, não sei. O que parece, é que nossa devoção por embalagens bonitinhas atingiu seu ápice nos últimos tempos. Sujeito tem que ser sarado, ter vida saudável, altas pretensões financeiras e ser vazio de chatonilices. Não vale barriga de jundiá, cerveja com amigos ou manias pra dormir. Tudo deve andar na crista da onda dos carinhas da Malhação. Do contrário, sua pontuação cai e você acaba na parte de fora daquele restrito círculo dos cidadãos bem sucedidos.

O fato é que o bom-mocismo contemporâneo anda cada vez mais irritante. Se você não se preocupa tanto com a causa dos cães de rua, você é um desalmado. Se você não acredita piamente na preservação do patrimônio histórico, você é um ignorante. Se você não faz das tripas coração pra rechear sua conta com mais e mais cifrões, você é um acomodado. Há uma urgência por certo movimento contínuo em uma única direção. Do que é composto esse destino? De promessas. Promessas de uma vida feliz e tranquila. Promessas de uma existência longa na qual você jamais terá que enfrentar a fila do SUS. Promessas de que, lendo certo manual e seguindo certas regras, invariavelmente você atingirá o sucesso. Promessas em cima de promessas fincadas em um ideal de vida cimentado por rostos amigáveis e carros do ano.

Talvez isso seja bom. Quem sabe, o que todos queiram. Duvido alguém que renegue coisas do tipo. Mas sustentar todo um futuro em torno de expectativas do gênero, sempre será frustrante. As quedas virão. Os desassossegos surgirão. E o que você fará? Engolirá a mais nova pílula da felicidade e seguirá com a cabeça ereta, como se todo seu corpo estivesse enrijecido pelo mais potente Viagra? Convenhamos: as coisas não são bem assim. Precisamos cair. Precisamos nos desesperar. Riso demais é desespero. Sociabilidade em excesso é carência ou falsidade. Não existe nenhum problema se você acorda xingando o dia ou a capa do jornal. Isso é humano, isso é natural. Quem não tem gorduras ou defeitos? Quem não tem preconceitos, vícios ou dentes um pouco amarelados? Ninguém, ora. Então pra quê negar tais pontos? Por qual razão viver na frustração de um objetivo que jamais será alcançado? Isso é bobo, muito bobo.

O problema é que gostamos de cultuar bobeiras. Vivemos a maior parte do tempo como quem faz cruzadinhas. Negamos o essencial e nos preocupamos com os enfeites. Parece que a cereja do bolo vale mais que o bolo em si. Ao invés de olharmos para o lado e nos darmos conta de que estamos todos no mesmo barco, viajando sem eira, beira ou propósitos por um Universo repleto de mistérios, seguimos nos preocupando com mesquinharias que nada nos acrescentarão além de dores de cabeça. Claro que você pode ralar na academia. Claro que você pode suar neurônios pra passar em um concurso. Além de você, ninguém é responsável pelos seus passos. Você está condenado à liberdade e à responsabilidade que surge dessa condenação sem remetente. Mas você deve se dar conta disso. Você deve sentir o absurdo da sua condição a todo momento para que efetivamente perceba o valor que existe em cada instante da sua vida. Se não for assim, bobeiras musicais, bobeiras sentimentais, profissionais ou místicas irão tomar conta da sua vida.

Isso tudo me lembra um parente de São Luiz que via e vejo raramente. Quando eu tinha meus quinze anos, ele vinha todo espaçoso, sorridente e cheio de dedos pra largar: “Mas esse guri dá um baita jogador de basquete, hein?!”. Ao que eu respondia: “De forma alguma: minha especialidade é jogar sinuca”. Daí ele ficava encabulado e me deixava em paz. Hoje em dia, as coisas não mudaram muito pro meu lado. Se alguém que mal conheço chega todo querido, fecho a cara e me imagino trancado no quarto, lendo James Joyce sem entender bulhufas. Com essas pretensões muito certinhas, funciono do mesmo jeito. Desconfio de tudo o que promete demais e todos que são perfeitos demais. Trago mil pulgas atrás da orelha com alegria em excesso, entusiasmo em excesso e escassez total de preguiça. Não é que não goste do ser humano. Pelo contrário, gosto de gente. Mas gosto de gente que é gente e não tem medo de ser gente. Com os demais, esses que se querem sem defeitos e preocupados com a fome na África, apenas convivo.

É como dizia o poeta: “Ado-a-ado / Cada um no seu quadrado”. E ponto final.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

SETE BREVES CONSIDERAÇÕES PARA UM ANO ELEITORAL: PARTE PRIMEIRA.

Um dos maiores problemas do nosso tempo foi diagnosticado há décadas por Nelson Rodrigues: vivemos uma época em que "os medíocres perderam a modéstia".
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Nunca, jamais, em hipótese alguma, darei crédito ou levarei a sério quem diz e repete aos quatro ventos que os únicos e certeiros "inimigos do povo", "culpados por todos os males do Brasil", "que merecem uma latrina como cama", são os políticos e ninguém mais. Vale o mesmo para aqueles que pensam em direitos humanos ao melhor estilo Datena - bem como para aqueles outros que lêem uma notícia no site do Projeto Portal (entenda-se: ET Bilu, aquele com voz de criança sacana) e acham que aquilo é "real". Razões? A vibe desses senhores e tantos mais é exatamente a mesma. Costumeiramente são os arautos da moral e dos bons costumes, devotos de um dogmatismo caolho.
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"Sou anti-PT", "anti-PMDB", "anti-ISSO", "anti-AQUILO": que coisa mais irritante gente que vive falando coisas assim. Já eu, penso que bom mesmo é anticoncepcional.
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Seguinte. Pessoa inventa uma bandeira - geralmente com traços de "bom moço". Em seguida, torna suas cores uma espécie de roupa. Veste esse tecido em todos os momentos, enchendo a paciência de qualquer cidadão que cruzar na sua frente. Discursa, debate, participa de "movimentos sociais" (com vinculação partidária óbvia e interesses particulares mais claros ainda) e se diz "preocupada". Tenho visto muito disso pela cidade desde a metade do ano passado. Qualquer coincidência com o ano eleitoral não é mera coincidência.
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Estamos na época dos slogans sonolentos. "Fulano é a cara da juventude", "Cicrano é a voz do campo e da cidade", "Beltrano é aquele que fará mais e melhor". Sem contar nas inúmeras canções like a San Marino que surgirão nesse meio tempo. Pois olha. Com tantos candidatos feios, com tantos aspirantes a vereador que nunca viram um boi na frente e com tantos políticos que não sabem a diferença entre argumento e pedantismo, tenho mais é que rir. Mas o que acho mais engraçado (mesmo) é o look das fotos de campanha: quase nunca de terno, sempre de camisa, geralmente com cara de Chuck Norris bondoso (e bem sucedido) ou de senhora que freqüenta a Casa da Amizade pra tomar chá com as amigas. A onda é aparentar ser "um cidadão de bem" - no sentido mais frígido e sem graça do termo. Falta tesão na política.
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Sempre desconfie de alguém que diz que "ama sua terra". Geralmente, mesmo que existam exceções, essa pessoa confunde "terra" com aqueles algodões nos quais as crianças plantam pés de feijão nos jardins da infância. Ou seja: é tudo descartável, seja qual for o norte ou o embasamento do discurso. E mais: sempre desconfie dos chatos de plantão com discursos monocromáticos. Tudo o que se expõe em apenas uma cor tende direta e totalmente à cegueira - e pior: a propostas carentes de qualquer utilidade pública.
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Aposta/profecia: "Ai se eu te pego" será a base para os jingles políticos mais utilizados em 2012. Ou será que o "tchu tchá"? Tipo: "Eu quero Fri / Eu quero Zzo / Eu quero Zzo / Zzo, Zzo, Zzo / Pra vereador!".

Pronto. Perdi a oportunidade de me candidatar.

18 + 10 = 28 (NOTAS SOBRE 17 DE AGOSTO DE 2012).

17 de agosto de 2012: completo vinte e oito anos. Mas digo: não gosto de festas de aniversário. Não gosto de gente cantando em minha homenagem. No máximo, um trago com os amigos e olhe lá. Mais que isso seria demais. Pra quê compartilhar com os outros minha troca de idade? Eles certamente sentirão um prazer mórbido em cantar “parabéns” pra mim. Já repararam isso? O que você faz quando cantam “Parabéns pra você”? Fica lá, com aquela cara de tacho, sem saber o que falar. O que é mais correto: cantar junto e bater palmas (feito uma foca no cio) ou ficar rindo pra todo mundo e rangendo um “obrigado” entre os dentes amarelos? Simplesmente não sei. É muito constrangimento.

Deve ser por isso que detonei meu aniversário de cinco anos. Sim, essa é uma história real. Meus pais resolveram fazer meu aniversário de cinco anos no Clube Comercial aqui de Santo Ângelo. Era a época áurea do clube e até acho que meus pais eram da diretoria. Pois bem: naquela época – sim, podem rir! – eu era fã do Rambo. Pra quem me acha ridículo hoje, isso será um prato cheio, pois o fato é que eu chegava a andar pela Marquês com uma fitinha do Rambo na testa. Podem imaginar isso? Não sei, mas é verdade. Voltando ao assunto, meus pais decidiram fazer meu aniversário de cinco anos no Clube Comercial. A temática, claro, seria o Rambo. Por minha escolha. 

Minha mãe alugou trocentos quadros do Rambo pra pôr nas paredes. Fez bolo com cores militares e tudo o mais. Eu achava os militares o máximo. Hoje quero distância disso. Tanto é que nem cheguei a servir o exército. (Ainda bem.) Mas não vêm ao caso as razões. O fato em si é que uma penca de gente foi convidada pro meu aniversário. Crianças e adultos e tias solteironas com presentes relacionados ao Rambo pro Eduardinho. Eu, claro, estava vestido à caráter. De Rambo. Mas quando vi aquele monte de gente chegando, comecei a ficar agoniado. Olhava pros lados, via aquelas fotos intermináveis de um cara que parecia um ogro musculoso e simplesmente não sabia o que fazer. Minha reação? Corri pro banheiro e fiquei lá trancado, chorando. 

Sim, minha gente. Meus pais fazem uma festa tri legal pra mim, gastam uma baita grana e o xarope do Eduardo se tranca no banheiro do Clube Comercial sabe-se lá porquê. Meu avô e minhas tias tentaram e tentaram me tirar de lá. Lembro que eu gritava. Lembro que eu dizia: “não quero sair! não quero sair!”. Chegou uma hora que saí, claro. Não recordo das condições dessa progressão de regime. Sei apenas que encarei aquele pessoal com olhos molhados, meio constrangido com a tira vermelha do Rambo na testa e ouvi um “Parabéns pra você” ser cantado logo em seguida. E qual era o fundo? Um disco da Xuxa! Eis a origem, dirá algum psicanalista de bar, de todo meu ranço com relação ao “Parabéns pra você”. 

Mas estão todos errados esses sujeitos que formulam hipóteses sobre minha fobia. Mal desconfiam eles que minhas razões são mais profundas. Saberá alguém que minha Tia Débora me deu aos quatro anos, quando eu tinha uma asma terrível, um exemplar daquela história dos três porquinhos? Garanto que ninguém sabe. Lembro inclusive que quando eu tinha cinco anos, sofri um acidente de carro no qual quase morri. Quebrei meu queixo e estourei a jugular. Me salvei por conta dos meus pais e do Dr. Renato Kettner. Enquanto estava no hospital, minha tia pá e tá fazia uns mingaus de maisena pra mim. Eu adorava aquilo. Daí ela, que tinha uns dezesseis anos, falava da Grécia Antiga enquanto eu estava lá, deitadão na cama do hospital, todo podre. De algum modo, a Grécia Antiga sempre terá cheiro de mingau de maisena pra mim. 

Até aí beleza. Mas o que isso tem a ver com o “Parabéns pra você”? Absolutamente nada. Não lembro de nenhuma história mais de “Parabéns pra você” satânico. Na verdade, apenas falei essas coisas porque os anos realmente passam e a gente mal percebe o quanto fica velho e velho com o correr dos meses. Agora pouco, duas e tanto da manhã de quinta-feira, me olhei no espelho e me senti um senhor. Um senhor de vinte e oito anos. Isso quer dizer alguma coisa? Com certeza não. Mas o fato é que senti. E tudo o que eu sinto quer dizer alguma coisa. Afinal, senti. Então existe. 

O que falar ao final? Sempre acabo qualquer texto curto com sete parágrafos, mesmo que não tenha cumprido essa promessa nas últimas colunas. Mas é coisa antiga. Então é necessário cumprir o ritual, já que semana passada, por exemplo, isso não se deu. Um sacrilégio! Mas parece que já falei tudo. Parece que meus dedos esgotaram os assuntos e apenas querem sentir o Miles Davis que o computador chia. Falarei sobre o quê? Preencherei linhas como? Poderia apenas digitar vogais. Ou poderia somente digitar consoantes. Mas vou por um caminho novo. Vou revelar meu maior medo pra esse ano que logo findará. Sabem qual é? A Simone lançar um novo CD de natal. Isso sim seria um prelúdio nefasto para o fim do mundo em 2012. Nenhum deus (com “d” maiúsculo ou minúsculo) suportaria aquela voz de gata engasgada sem pensar em demolir nosso planetinha. 

Portanto, tomemos cuidado.

LIVE AND LET DIE.

Não existem ironias da vida. A vida é uma ironia. Você olha pro céu. É noite. Vê uma porção de estrelas. Quando não sabe o que são, acha bonitas. Cria verruga no dedo apontar pra uma. Liga “Lua Cheia” do Papas pra namorar aos dezessete. Tudo lindo, romântico, Sparks. Mas depois descobre que essas estrelas provavelmente não existem mais. É a luz que viaja zilhões de quilômetros e encontra seus olhos. Elas estão mortas. O céu se transforma numa máquina do tempo. Um cemitério de sóis violentos, o que talvez torne tudo ainda mais belo. Mesmo que cruel. 

Quando tive Biologia na escola, me ocorreu algo parecido. Lembro que a professora falava em “Teoria Criacionista” e “Teoria Evolucionista”. Na primeira, Deus criou a vida. Na segunda, somos parentes dos macacos. Nunca consegui ligar a primeira com qualquer coisa que pudesse se chamar de “teoria”. Quanto à segunda, achava muito interessante. E angustiante. Mas quem sabe tudo o que é interessante seja angustiante. A angústia é uma porta para a autenticidade. Quando você está perdido, geralmente se encontra. Ou afoga suas mágoas em qualquer coisa que faça sua mente esquecer de esquecer de esquecer. Algo assim. 

Mas pensa no take: nasce, cresce, morre. Entre o “nasce” e o “morre”, o “cresce” é que faz toda diferença. Nele tudo acontece. Sexo, vinho tinto, macarrão à bolonhesa e paranóias pra dormir. Tudo reside aí. Tudo o que você deixará além do pó no chão, farelos do seu corpo decomposto, está aí. Lembrança naqueles com os quais conviveu? Provavelmente. Um livro, um disco, um trabalho que por acaso fez? É possível. Mas qual o sentido disso tudo? Estará contido apenas no “cresce”? No amadurecimento das laranjas que, de tão maduras, caem e apodrecem em vermes ao sopé do pé? Ironia, muita ironia.

O estranho é que pra vida ser irônica, teria de ter um narrador que assim a fizesse. Do contrário, o termo não serviria. Talvez não sirva. Não há qualquer evidência de narrador. Ao menos até o momento. Vejamos o tempo, portanto. Detém a perspectiva do sujeito: o cidadão sente seu transcorrer. Detém a perspectiva naturalista: o tempo existe antes de você sentir seu transcorrer. Qual é a mais válida? Diria que ambas. Mas real, cruel e violenta como uma mulher berrando TPMs, somente a natural. Antes mesmo de seus pais transarem e nove meses depois você nascer, o tempo estava aí. No primeiro milionésimo de segundo após o Big Bang, o tempo passou a existir. E o passado do tempo? Não existe: não há tempo. 

Fato é que tudo é muito estranho. Esses dias, um camarada largou essa num churrasco: “imagina se tem gente nos observando lá do céu”. Respondi que ele andava assistindo muito Big Brother. Ele retrucou: “pode até ser, mas sempre há a possibilidade”. “Sempre há a possibilidade”: essa frase ficou girando na minha cabeça. Possibilidade de vida pós-morte, possibilidade da validade da “Teoria Criacionista”, possibilidade de que, em duas horas, eu escreva o romance que venho matutando há anos – e que é até agora somente um matutar. Sempre existem possibilidades. Mas e realidades? Não sei. Talvez seja também uma possibilidade e vivamos na Matrix. 

Quanto mais estudo, mais asno me sinto: confissão. Quanto mais sei, menos sei que sei: outra confissão. Quanto mais vivo, menos sei o motivo de fazer tudo o que faço: terceira e última confissão. Invejo pessoas plenas de objetivos. Sabe aquele sujeito que parece realizado após passar num concurso? Pois é. Invejo ele. Mas também me atrevo a dizer que esse senso de realização da criatura é uma capa. Uma rolha. Cobertura de nega maluca abatumada. Lá na massa do bolo, a coisa não é bem assim. Existem furinhos. Furinhos de vazio. Furinhos de nada que você nem percebe ao mastigar. Mas estão ali, ponteando seus dentes, estalando mínimos e audíveis somente pra ouvidos de pastor alemão. Essa é a verdade: pra suportar o vazio, cobrimos sua presença com outra, negando a ausência que nos constitui. 

Assim é que o niilismo não me parece algo sem nexo. Niilista é aquele que diz que não há mais nada a não ser o nada. Tudo se equivale a nada. Não há peso, medida ou INMETRO. Nenhuma metafísica se sustenta, nenhum valor detém contornos reais. Tudo? Que nada!: nada. Mais ou menos isso. Mas quem sabe essa seja a mola propulsora de tudo que talvez possamos construir. A partir do momento em que você sabe desse nada, vê que tem todo um mundo pra trazer à tona. Pode se sentir mal, inicialmente. Pode se desesperar, amansar crises na cachaça, certamente. Mas depois desse momento, algo de autêntico se instalará. A angústia precede a autenticidade. É normal. Algo como você tomar um pé na bunda, passar por dias de choro em pleno Carnaval e sair, noites depois, renovado e feliz disso tudo. Vai saber se no fundo não é disso que fala toda “corno music”. 

“O Guaíba esverdeou”, diz a manchete da Zero. “Grandes coisa!”, resmungo ao derrubar café no piso branco. Deixe que as algas trabalhem. Deixe que eu escreva. Deixe que as estrelas permaneçam mortas, belas em seu brilho. Deixe que escutem Papas pra pegar a moça de dezessete. Deixe que carros voem no quebra-molas na frente da minha casa. Deixe, simplesmente deixe. Preocupações? Claro, existem. Projetos? Devem estar sempre presentes. Do contrário, entoaremos o mantra idiota do “carpe diem” dia após dia. Mas enquanto tudo desmorona e eu mesmo morro um pouco a cada hora, pensando na vida, no Universo e tudo o mais, meu lema será: LIVE AND LET DIE. Cruel? Pode ser. Mas não mais que tudo. Não mais que a ironia de existir. E ainda assim saber: não existe jeito ou maneira das coisas serem mais belas. Esse é meu humor. Essa é minha conclusão.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Jam nº 25.

Anteontem, antes de dormir, dei-me conta de algo.

Mais ou menos setenta livros ao lado da minha cama - e todos dizendo a mesma coisa: isso significa aquilo, aquilo se faz através disso, A pode, B não pode, o futuro será assim, o passado certamente foi daquele jeito e o presente provavelmente é isso que está escrito.

"Mas o que está escrito?", me pergunto.

A resposta chega imediata e óbvia: tinta preta em papel branco encadernado.

terça-feira, 26 de junho de 2012

O CARA E O CARINHA.

No Brasil, o que é público existe para ser privado e o que é privado existe para não ser visto pelo público ao menos que dê seus ares no BBB. Por notar isso, Maluf é o grande visionário da política brasileira. Sem sonegar personagens antecedentes, Maluf foi quem melhor compreendeu a cultura ibérica do privilégio, a cultura indígena da indolência e a cultura negra da magia que fazem o homem latino-americano ser o que é. Maluf é como o Cérebro do Pink, com a diferença de que, ao invés de querer dominar o mundo toda noite, decidiu se aproveitar da moralidade brasileira para engordar seu patrimônio. Antes de qualquer alucinação antropológica à Darcy Ribeiro no sentido de que aqui se daria o nascimento da grande novidade do século XXI, uma espécie de "Nova Roma" tardia e tropical com a mestiçagem atiçando o estopim da criatividade para o mundo, essa moralidade sustenta a existência social de gatos burocráticos (ou não) que furtem o respeitável cidadão nacional de cumprir com quaisquer das suas obrigações.

Diferentemente da Europa e mesmo da parcela pensante dos Estados Unidos, aqui não vale a racionalidade bem construída, o pensamento coeso e a crítica consciente. Aqui valem a sabedoria de boteco e o academicismo egoísta, o cultivo de nativismos caolhos como se fossem a forma mais avançada do que se convencionou chamar de “cultura”, e o sorriso desdentado daquele que foi sodomizado na sexta e no sábado já esquece de tudo pelo futebol na tevê. Longe do senso de coitadice generalizada que sempre disse que somos umas crianças exploradas pelos países ricos na soma zero dos proveitos recíprocos, ou do papão do neoliberalismo que é o estandarte da esquerda na consagração da razão de todas as mazelas existentes, Maluf compreendeu que é impossível se livrar do mercantilismo patrimonialista, com seus monopólios estatais, suas burocracias corruptas, seu fiscalismo predatório e seu clientelismo político que fazem a América Latina ser isso daí.

E não adianta sentar a ripa no clientelismo, por exemplo. Todos se emborracham dele pelo menos uma vez na vida. O latino-americano há tempos perdeu as ilusões da grande reforma social que lhe daria próteses dentárias, motéis gratuitos e a inexistência do SPC. Se os da esquerda se contentam com discursos que dilatam as veias do pescoço com delírios bolivarianos de igualdade e justiça, os da direita criticam tudo aquilo que pode fazer o pobre menos pobre e dizem que a cadeia é a solução final, e os do centro usam do conforto da vaselina para passar suas costas de mão em mão na suruba isonômica do Brasil, o que resta são os benefícios que se pode tirar de algum conhecido político que descole uns cargos aqui e ali para juntar alguns quinhões burocráticos que permitam a aposentadoria aos quarenta e a compra daqueles comprimidinhos que aliviam o correr dos anos para o macho dos trópicos.

Por conta disso e muito mais que nem a Biblioteca de Alexandria ou o Google dariam conta de organizar, Maluf merece todos os aplausos pela aliança recentemente firmada com Lula. Os políticos brasileiros, como disse esses dias um daqueles senadores embolorados pelo mofo das bancadas, são os “pais da pátria”. Se eles são os “pais da pátria”, nós somos os "filhos pátria", embora a substituição e a subtração de algumas letras da palavra “pátria” diga mais sobre o brasileiro que ele possa imaginar. Como bons "filhos da pátria", como iríamos questionar as intenções dos nossos "pais" pela mera desconfiança rançosa diante das suas folclóricas boas intenções para com seus rebentos?

Em um continente onde predominam representações cheias de diatribes político-sociais, truculentos ufanismos e deploráveis bairrismos nacionalistas ou não, como é o caso da arrogância dos gaúchos ao achar que o que vem do Rio Grande do Sul é simplesmente melhor, nada de diferente pode existir sob pena de esquizofrenia e choques elétricos no café da manhã. Apesar da aliança de Lula com Maluf nos causar indignação, ao menos aquietará o susto daqueles que, não tão acostumados em dar as costas para seu amante, ainda resistem à predestinada escolha do buraco que lhes foi prometido e sentenciado quando a Certidão de Nascimento e o RG lhes impingiram a simples denominação de “brasileiros”.

Se Maluf não é o cara, é ao menos a cara de todos os caras e caras que existem no Brasil, mesmo que essa cara, se não estiver na Caras, tenha de se contentar com um radinho de pilha, com a novela das oito e com um grito de “mengo!” empalado na garganta.

E o Lula? O Lula é o carinha. Ainda tem muito que aprender.