sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

INFORMAÇÃO: Twitter e Facebook.

Aos eventuais leitores desse blog, informo que também posso ser encontrado no Twitter e no Facebook.


No Twitter, minha conta é @eduardofrizzo.


No Facebook, caso queiram, procurem meu nome - isto é: Eduardo Matzembacher Frizzo.


(Também tenho uma conta em estado vegetativo no Orkut - codinome: Irineu Funes.)


Digo isso porque muitos fragmentos que vez em quando ganham algum corpo no NÃO É CÉU., nascem justamente dessas ferramentas que mencionei acima. 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Jam n° 12.

Espelho escondido é reflexão:
na parede, versão perversa da identidade –

ou será sua negação?,
sua mordaça de cobre calcada no frontispício de qualquer dúvida?

Do rosto, sabe-se apenas a falta
entre a pele e a letra:
mudez que desenha o mundo na costura da boca

(jamais o cerzir das águas
ou o farejar dos ventos –
calcário,
flúor e branquidão fingida em cada seta:

gole de extremo,

tinta de pétala). 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Jam nº 11.

É um tipo diferente de gostar.

Não é um gostar extravasado como aquele de antigamente, dado ao tino de Almodóvar e ao sabor das pimentas.

Não é um gostar prenhe de impossibilidades, renúncias, demagogias do desejo que persistem na conta de azulejos e lâmpadas que iluminam cada sala.

É um gostar sorrateiro, gostar de sussurro, gostar de amêndoa e linha que escorre sem quaisquer previsões quanto a um passado ou um futuro.

Gostar que sabe do seu fim, seus contornos de gosto, suas lascívias de carne e suas extremadas vozes que jamais poderão definir as venezianas do dia.

Se for um gostar mentiroso, desses que confundem “saber” com “sabor”, o único problema é a duração e a idade, sendo que mesmo isso parece sem sentido diante do gostar que sente.

A cabeça febril, têmporas quentes, cabelos quase suados pelo estranho frio de dezembro, sabe de tudo isso.

Pés com meias, mãos ressecadas, camiseta antiga abraçando o tórax em tecido de festas passadas.

Violão ao lado, capa Di Giorgio (marca também), garrafa d’água no chão e uma vontade de estar com alguém – com o alguém para o qual aponta esse gostar.

Mas se sonhos sonhos são, sonos poderão?

Por isso dorme: a saudade inspira prelúdios.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Desintitulado nº 27.

A estrutura de uma cultura evidencia sua linguagem articuladora. A estrutura da razão evidencia o resultado. O mensageiro vem sempre com a mensagem, disse Heidegger. A resposta está implícita na pergunta. Mas é preciso o entendimento das fronteiras da pergunta para que a resposta seja sabida. Tudo é questão de campo, paisagem, referencial. Espaço que se preenche com tempo. Espaço que é enquanto tempo. Mesmo que o tempo seja vivido, sentido – jamais podendo ser submetido a qualquer necropsia. E seria válido falar em “necropsia” (como se o tempo fosse uma entidade morta)? Não sei, mas o fato é que o tempo é a única propriedade do Universo que não morre, sendo também a única que possibilita o que comumente se chama “morte”: via comparação. Sabe-se da morte na comparação com a vida. Sabe-se da hora de Brasília em comparação com a hora de Tóquio. Semelhanças e dessemelhanças. Vetores negativos e vetores positivos. Dualidade. Há um esqueleto milenar que nos remete a isso. A conclusão não poderia ser diferente. Mas a pergunta persiste: é isso? O problema é que pensamos apenas o mensageiro, não a mensagem. A mensagem é significado, o mensageiro significante. O mensageiro é a projeção da mensagem. É o caminho que a mensagem encontrou para chegar ao destinatário. Mas a mensagem não está no mensageiro. Ela vêm com o mensageiro. Vir é diferente de estar. O ser humano é devir. É aquele que há de vir. A mensagem há de vir com o mensageiro. Mas é sempre o mensageiro que fala a mensagem, seja através do seu trajeto ou das suas mãos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Desintitulado nº 26.

Os relógios não medem o tempo. Um relógio mede outro relógio. O tempo não pode ser destrinchado em um laboratório. O tempo é como uma paisagem que se estende às nossas costas e a nossa frente. Por ele andamos, pedaço a pedaço. Mesmo assim, isso é falar de espaço. Não falar de tempo. O tempo é aquela sensação que temos quando percebemos que ontem éramos alguém que hoje não reconhecemos no espelho. O tempo está nas células mortas. O tempo está nos mortos. Mas ainda assim, nenhum diz o que é o tempo. Somos aqueles nos quais estamos nos transformando. Somos devir. Projeção. Projeto que movimenta o ar, o fogo. Mas não movimenta a si mesmo porque em si é o próprio movimento. Essa é a natureza do tempo: movimento. Coisas finitas, padrões infinitos. Caixa fechada a quem está no tempo e aberta a quem não está. Mas quem não está no tempo? Somente deuses não tem objetivos: porque não tem tempo. O tempo dos deuses é o devir. Mas um devir cuja impossibilidade de projetos é a única condição. Como a impossibilidade de projetos contraria o próprio fato das coisas serem finitas e dos padrões serem infinitos, isso quer dizer que os deuses são o próprio tempo. Mas não reconhecemos isso. Precisamos de personas, precisamos de máscaras. Então corporificamos o tempo. Daí relógios. Daí células mortas, altares. Mas um relógio mede outro relógio e uma célula morta somente pode ser identificada como tal quando em contato com uma célula viva. Tudo é comparação. Cria-se uma ópera do tempo. Cria-se o verniz das horas. Mas subterrânea, a realidade é indiferente. É, não está.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Jam n° 10.

A estrela suspira carbono ao infinito.

Egito, Constantinopla e Tenochtitlán, são a mesma peça que vejo enquanto meus dedos, na esteira do fim, circundam os pólos das unhas com a fumaça que sobe e desaparece.

As coisas são o resumo de uma despedida.

A beleza que via ontem se transformou nessa mágoa de riso e dor, tornando os olhos uns poços nem secos nem molhados, cheios de algo do qual sei o nome e que sempre está aqui.

Diz que o Cosmo não é igual.

Diz que a rotação do planeta é completamente diferente daquela que presenciou nossos fins de tarde.

Diz que o gosto do ar é outro e que as luzes dos postes não são tão amarelas quanto penso.

Fala pra mim, nem que seja ao telefone, que Órion permanece intacta, que Sirius jamais apagará e que ninguém ainda pisou na lua.

Depois me enche de nada, sopra minha boca como se o sal tivesse tomado meus pulmões, soca meu peito, morde meus braços e esquece por mim de tudo isso que senti ao perceber que o toque é bem mais que a pele.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O NADA COMO CENTRO DO REAL: ENSAIO SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA EPISTEMOLOGIA PÓS-MODERNA.

Em 1930, Sigmund Freud publicou o ensaio O mal-estar do homem na civilização[i], fazendo uma digressão entre a vontade de conforto e a inexistência desse conforto na época em que vivia. A constatação de Freud é no sentido de que o homem do século XX, permeado pelas várias promessas provindas do cientificista século XIX, ansiava pelo paraíso que a modernidade prometia. Essa promessa, calcada na perspectiva de segurança, de uma vida social estável e organizada em torno da ordem, povoou o senso comum acompanhada pelo extremo progresso tecnocientífico visto desde a Revolução Industrial no século XVII. Mas ao passo que as aspirações do homem caminhavam para uma direção, a própria realidade caminhava para outra. O que se via, em contraponto às certezas nascidas da ciência que tinham o mundo empírico como começo e fim, era uma sociedade que cada vez mais se mostrava incerta, incontrolável e assustadora. Nascia aí a percepção de uma angústia que permearia todo século XX.

Alguns anos antes, em 1927, Martin Heidegger publicou Ser e tempo[ii] [iii], obra tabular para a filosofia do século XX. Buscando a superação do pensamento metafísico por meio da intersecção entre os juízos apofântico, correspondente ao plano da linguagem, e hermenêutico, correspondendo ao plano da experiência, Heidegger tencionou ultrapassar uma questão que já havia em parte sido debatida por Immanuel Kant, mas não com a radicalidade da proposta heideggeriana. Com Kant, especialmente em Crítica da razão pura[iv], teve-se pela primeira vez na história da filosofia, com exceção do pensamento pré-socrático do qual Heráclito talvez seja o maior representante, uma tentativa eficaz de definir a origem do conhecimento. Kant, em suma, dirá que todo o conhecimento parte da experiência, mas que, para se ter o conhecimento a partir da experiência, são necessários certos juízos que precedem essa experiência e possibilitam a existência do conhecimento. Tais juízos seriam o que Kant denomina sintéticos a priori, que, ao contrário dos sintéticos a posteriori, justamente os provindos da experiência, definiriam a própria. Mas ao dizer que o homem necessita de juízos anteriores à experiência para que então a compreensão dessa experiência se dê, Kant não consegue vencer o desalinho abissal entre idealismo e empirismo, considerando-se que sua postura, por situar a possibilidade do conhecimento em um plano que precederia a experiência, fatalmente resta configurada como idealista.

Já Heidegger, discípulo de Edmund Husserl, o qual tencionava uma fenomenologia transcendental, buscando um juízo desprovido de juízos que pudesse dar conta do objeto que procurava apreender, irá marcar o século XX com a superação do dualismo clássico da filosofia ocidental. Ao contrário de Husserl, que ao buscar a pureza na própria percepção do objeto redundava em uma postura idealista, uma vez que para conhecer o objeto sempre se parte de uma pré-compreensão desse mesmo objeto, Heidegger irá situar a percepção do mundo em dois planos: o plano apofântico e o plano hermenêutico. O plano apofântico e o plano hermenêutico, correspondendo um ao plano da referência e outro ao plano do referido, não ocorrem um após o outro, como se poderia pressupor em uma dialética proveniente da acepção hegeliana. Contrariamente, ocorrem no círculo hermenêutico, que consiste na própria experiência do homem enquanto ser-no-mundo.

Como o homem é um ser que para estar no mundo tem sempre de carregar uma compreensão do que está ao seu redor para então se estabelecer enquanto humano, sendo que esta compreensão se caracteriza como um juízo básico acerca dos objetos e dos sujeitos que compõem o mundo, desde já e sempre o homem necessita de um cuidado para estar no mundo. Desse cuidado, estabelecido mediante o contexto histórico, lingüístico e social que permeia o próprio dizer do homem, brotarão os pré-juízos que redundarão em juízos acerca da realidade. O que Heidegger pretende explicar, é que quando se olha e se fala de um objeto, não se está apenas dizendo o que é ou o que não é esse objeto. Diferentemente, acopla-se ao objeto a carga vivencial do sujeito que diz o objeto. Quando se fala do objeto, ao contrário de reproduzi-lo no plano lingüístico, como se vê na dual tentativa platônica, há a produção de um signo que será por si mesmo uma coisa diversa daquele objeto que o possibilitou. Ao dizer as coisas, jamais há uma referência necessária às coisas, mas referências que habitam um movimento que se dá no plano lingüístico.

Heidegger baseou a primeira fase do seu pensamento na busca da superação da perspectiva metafísica a partir da intersecção do plano apofântico (palavra/referência) com o plano hermenêutico (objeto/referido), sendo que no entremeio dessa tênue linha se encontra o ser humano, o dasein, o ser-aí heideggeriano. Se o homem é enquanto tempo, tendo como característica fundamental a finitude, é ser-para-a-morte, só podendo ser em algum lugar enquanto está nesse lugar, de modo que só há o ser-aí no horizonte temporal da finitude. O que se pode retirar por ora do pensamento heideggeriano, é a extrema vontade de fazer o homem voltar para o lugar no qual sempre foi e esteve. Heidegger, em A Caminho da Linguagem, comentará, inclusive, que “queremos ao menos uma vez chegar ao lugar em que já estamos”[v]. Se Heidegger faz essa afirmação, é porque sabe que o ser humano somente pode ser enquanto linguagem, fator que será explorado radicalmente, conforme comenta Lenio Luiz Streck, apenas por Hans-Georg Gadamer, que, com a célebre constatação de que “ser que pode ser conhecido é linguagem”[vi], dará um especial tratamento a certos pontos do pensamento heideggeriano.

Assim, se por um lado Freud percebe que o homem do século XX está imerso em um mal-estar que redunda do excesso de promessas em contraponto à escassez de realizações da modernidade, Heidegger tentará situar esse mesmo homem no campo da finitude. Freud, em Interpretação dos Sonhos[vii], já irá tanger o quanto a linguagem, o quanto os signos estão presentes na própria concepção primitiva que a humanidade faz de si mesma. Heidegger, entretanto, traçando um pensamento sobre o pensamento que caracteriza toda sua teoria, fará com que a linguagem seja a própria existência possível do homem, sendo que este terá de suportar sua existência sem jamais poder chegar ao objeto: sem jamais poder chegar ao que não se pode dizer e propicia todo o dito.

Antônimas a tais concepções, contudo, seguem todas as promessas modernas. Provindas de um século XIX ainda abalroado com os ideais iluministas, a modernidade irá legar a si um potencial que não é capaz de cumprir, o que, devido aos ápices de superação e obsolescência de suas próprias promessas, irá causar justamente o mal-estar que configura a condição do homem do século XX. Mas quem é esse homem do século XX? Quem é esse homem que interessou Freud, que interessou Heidegger, que, num contexto coletivo, produziu obras de extremo valor ao passo que espalhou aos quatro ventos um terror racionalista cujo exemplo maior pode ser obtido nos campos de concentração da Alemanha nazista? A partir dessas perguntas alguns pontos referenciais podem ser traçados.

Se o homem do século XIX, calcado pela repetição interminável da divergência entre o idealismo e o empirismo, não mais está para a concepção do homem do século XX, o qual, para além do dual, é uno, estando situado em sua finitude, em seu mundo, em sua realidade, para só então produzir essa mesma realidade a partir do que pode primordialmente conhecer dela, não mais se está pisando em um terreno estritamente moderno. A razão, mais por via de Freud que de Heidegger, foi posicionada como uma pequena ilha no mar revolto do inconsciente. O que acontece na passagem da modernidade é o desdobramento de promessas metafísicas que tencionavam abarcar o todo sem dar conta da própria falta que o todo pressupõe. Ora, se o homem morre, se o homem é caracterizado pela sua finitude, como buscar o todo, e portanto o infinito, se a própria condição finita não dá margem a uma visão do que se propõe com esta busca? A resposta pode parecer óbvia ao primeiro olhar. Mas para que esta passagem se dê no campo das ciências e mesmo no campo do senso comum, a revolução que deve se operar é enorme. O óbvio, na maior parte das vezes, é o que mais se demora a perceber – e talvez justamente por pressupor racional o que está para além da própria racionalidade.

O que se operou com a filosofia que tentou superar a perspectiva metafísica, que tentou captar o espírito da sua época, foi uma revolução epistemológica que influencia tudo o que se faz em ciência até os dias atuais. De uma concepção do homem centrada ou na idéia ou na realidade, brotou uma concepção do homem centrada em si mesma, centrada naquilo que é enquanto ser-no-mundo, ungido de impulsos e incoerências dos quais a psicanálise procurará dar conta com a sua tentativa de apreensão do inconsciente por meio da teoria freudiana. O que se tenciona dizer é que a estrutura das revoluções inerentes às concepções da feitura da ciência com o correr dos séculos, diz muito da própria estruturação da raça humana na história. Ao atrelar a produção do saber à estruturação do homem tanto numa perspectiva coletiva quanto numa perspectiva individual, pode-se perceber que este, em maior ou menor grau, sempre foi em função do que o saber da sua época dizia. Para perceber isso, basta atinar, por exemplo, ao fato da obra-prima de Montesquieu, Do Espírito das Leis[viii], referir claramente uma concepção idealista da realidade no próprio título, sendo que seu exato contraponto pode ser encontrado na doutrina de Auguste Comte, que deu foz a uma concepção empirista da realidade e a todo positivismo que permeou o século XIX.

Desse modo, pode-se ver também que esse mesmo positivismo ocorreu por conta da fúria cientificista que serviu de entrada ao século XX, no qual a modernidade, instaurada na consciência coletiva a partir do imaginário criado em torno dos ideais iluministas que tencionavam posicionar o ser humano como centro do universo a partir de sua racionalidade, viu várias de suas conquistas relegadas à obsolescência ao passo que outras foram maximizadas em todos os seus termos, o que redundou, segundo Zygmunt Baumam, até mesmo nas atrocidades do Holocausto, correspondendo este ao auge da modernidade devido à ausência de freios humanistas aos primados racionalistas[ix]. Contudo, em meados da segunda metade do século passado, várias posições teóricas começaram a se construir em torno dos tempos vividos. Percebeu-se que a época vivenciada não mais poderia ser rotulada como moderna, uma vez que várias das suas facetas apontavam para uma era posterior que passou a ser chamada de “pós-moderna”. Mas por mais que se trate de um tempo paradigmático no qual vários dos fatores que o compõem tem a sua respectiva singularidade ainda desconhecida, trata-se também de um tempo que não sabe dar nome a si, que não sabe se é em função do passado ou do presente, sendo que, para calçar seu próprio rótulo de “pós-moderno”, tem de se referir ao rótulo moderno através do prefixo “pós”.

Vê-se assim que o homem do século XX é um homem que está de passagem, para o qual a própria claridade, a própria iluminação provinda dos ideais referentes à Revolução Francesa, por exemplo, é incapaz de dar luz para a sua realidade. Mas como refere Emmanuel Carneiro Leão, “para o homem definido na mortalidade, uma clareza sem sombras não esclarece, ofusca”[x]. Se o século XX é um século vespertino, considerando-se que a claridade do dia pode cegar os incautos, há que se dizer também que a própria técnica, característica fundamental da modernidade em sua natureza sintomática, apesar de necessária à realização de determinadas aspirações humanas, esvazia de originalidade o próprio ser humano, uma vez que parte de parâmetros pré-estabelecidos para dar conta de uma realidade mutante e maleável, tida à mercê do tempo que a submete em todas as suas dobras. É nesse sentido que Heidegger trabalhará a noção de tecnocapitalismo, que desaguará, consoante a segunda parte da sua obra, na desertificação da própria humanidade, fazendo-se aí uma referência a Friedrich Nietzsche[xi]. Ao contrário da destruição, que elimina somente o que cresceu e foi construído, a desertificação põe amarras ao crescimento futuro e veda toda construção presente.

Mas se o tempo presente é irreconhecível, tendo de buscar sua própria identidade atual em uma identidade passada, releva-se que para além da desertificação verificada por Heidegger resultante do exacerbado apego à técnica, vive-se um tempo em que a ciência está construída a partir de outros pressupostos que não aqueles inerentes à modernidade – mesmo que de maneira alguma se possa menosprezar suas contribuições. Para perceber isso, importante ressaltar o surgimento da obra de Freud no despontar do século XX, na qual a produção teórica não se dá a partir de uma constatação ou uma verificação empírica, como se queria com a matriz que remonta a Galileu Galilei, mas a partir de uma determinada arquitetura conceitual que possibilita a própria apreensão do objeto pretendido, que, no caso de Freud, é o inconsciente. Pode-se dizer que, apesar de se encontrar historicamente situada na primeira parte do século passado, a obra de Freud já tem características pós-modernas, podendo perfeitamente ser considerada como o primeiro sintoma de um tempo que estava por vir.

Se diante de determinado ponto de vista a atualidade é inominável, daí provindo a configuração “pós-moderna”, de outro ponto de vista esta parece ser a nomenclatura mais adequada a esta mesma contemporaneidade. Mas o que pode se depreender de uma época como a atual é justamente o fato de que a ciência não mais se estrutura em torno de um paradigma estritamente racional, mas em torno de um paradigma que leva em conta até mesmo o sujeito do qual provém o discurso para assim dar cabo da própria autoridade daquele que dá o discurso da ciência. Contrariamente ao que estava sedimentado no seio da modernidade, na qual se deu o desdobramento da perspectiva metafísica para a qual nada surge do nada, na pós-modernidade, principalmente por conta da contribuição de Freud, começa a se perceber que a própria irrupção do discurso se dá não em razão de uma presença, mas em razão de uma falta. Esse reconhecimento promove uma revolução no modo de se pensar e de se fazer ciência que ainda não foi notada em sua totalidade, visto que vivendo tempos pós-modernos, as próprias promessas da modernidade se encontram arraigadas nas realizações presentes.

Considerando-se que na modernidade a tradição metafísica dava as cartas, na pós-modernidade a superação da tradição metafísica por via da filosofia que despontou no período Entre Guerras, de um lado, e a voz remanescente da contracultura francesa que perpassou os anos de 1960, de outro, foi determinante na própria concepção da feitura da ciência a partir de então. Nesse rumo é que Jacques Lacan irá falar que o nada, ao contrário do descaso perpetrado pela metafísica ocidental, não se caracteriza apenas como uma ausência, mas como uma presença, como uma falta que propicia a própria constituição do sujeito[xii]. É também nesse caminho que aponta Heidegger ao afirmar no célebre discurso da sua aula inaugural na Universidade de Freiburg, O que é a metafísica?, que a ciência, ao não admitir o nada, não admite o afeto fundamental do ser humano: a angústia[xiii]. Para Heidegger, a angústia se caracteriza como o afeto fundamental do ser humano por ser provocada diante do reconhecimento e da aproximação do homem com o nada. O relacionamento do homem com o nada se dá por meio de um permanente jogo de atração/repulsão, sendo que é este vai-e-vem que possibilita a própria existência do homem, uma vez que em torno do nada este se constitui enquanto linguagem.

Mas é de se dizer que a conferência proferida por Heidegger na Academia de Belas-Artes da Baviera no dia 6 de junho de 1950, intitulada A coisa, traz um maior desenvolvimento dessa concepção[xiv]. Nesta lição, Heidegger dirá que a estruturação do ser humano no terreno da linguagem se dá a partir do nada na mesma medida em que um vaso, para existir, tem de se estruturar em torno de um vazio. Com esta analogia, as coisas, para serem apreendidas pelo ser humano, pelo dasein heideggeriano, por meio da experiência e da linguagem, teriam de se dar como referências em torno de um vazio que propiciaria a sua existência. Da aproximação em relação à existência e reconhecimento desse vazio, desse nada, dessa presente ausência que propicia a estruturação das coisas enquanto linguagem, surge o afeto fundamental da angústia, este caracterizado pelo reconhecimento desse vácuo no centro do real. Contrariamente a uma tradição que surge com Aristóteles e avança até o discurso de René Descartes, o vaso não se cria a partir da matéria, mas em torno de um vazio. É aqui que se pode aproximar o que Lacan chama de real e que Heidegger irá chamar de nada. Se para Heidegger o nada é o que propicia o dito, para Lacan o real é o que é irredutível ao significante. Entre o real e o significante está o real irredutível ao significante, o real que padece de significante, o real que anda, o real do sintoma – ou seja: o homem. Esse real, que por sua vez será sempre representado por um vazio precisamente por não poder ser representado por uma coisa, é que irá estruturar o sujeito em torno da falta que lhe é própria.

O que entra em cena, no sentido exposto, é que a ciência, ao pensar que nada possa surgir do nada, ou que, mais exatamente, o nada não possa ter efeitos, continua adstrita a um posicionamento que remonta à postura metafísica, visto que não há como negar a presença da ausência do nada uma vez que seus efeitos são notados, por exemplo, pela angústia e pelo sintoma que constitui a existência do homem restrita ao plano lingüístico diante da impossibilidade de apreensão do objeto. Ao contrário do que dispõe a tradição metafísica, toda criação é sempre uma criação do nada, a partir do nada e em torno do nada. Saber o nada é o afeto fundamental: saber o nada é angústia. Caracterizando-se como uma falta postulada como fundamental para a estruturação do sujeito, a angústia é o que possibilita o próprio engendrar do mundo enquanto significante, enquanto novidade, enquanto inesperado da referência correlata à impossibilidade de apreensão do referido. Nascida do reconhecimento do nada, da falta mediante a total impossibilidade humana frisada pelo fator da finitude quanto ao conhecimento pleno da realidade, a angústia dá margem a todas as possibilidades de desdobramento que o ser-no-mundo possibilita. A estrutura original do ser humano, segundo Géromê Taillandier, “não passa de uma espécie de odre, de bolha em expansão, que não tem outro mérito senão o de se identificar com o contorno que encerra o vazio central”[xv].

A poesia, a filosofia, o pensamento e a própria realidade como se mostra ao homem, isto é, no plano da linguagem, são construções em torno desse vazio que possibilita a existência das coisas dentro das possibilidades que o homem tem de percebê-las dada a sua fundamental condição finita. Mesmo que o nada não seja um ente ele tem de se fazer ente, tem de se fazer presença ausente, para só então se admitir ao homem enquanto possibilidade da própria constituição da realidade. Sendo inominável, já que nunca se sabe exatamente o que é, possibilita todos os nomes, possibilita todas as coisas por meio do seu reconhecimento através da disposição fundamental da angústia. Ser-aí, dessa forma, quer dizer estar suspenso no nada. Desenvolver-se na suspensão nadificante que possibilita a questão fundamental e assim o mundificar do mundo, o nascer dos signos brotados da percepção do nada, significa andar em direção a liberdade, pois o ser se manifesta enquanto finitude no ente que alcança a transcendência quando no abraço do nada. Se Lacan afirma, conforme comenta Jöel Dor, que “a palavra é a morte da coisa”[xvi], o que resta é transitar na impossibilidade de dizer o dito como condição de possibilidade do próprio fazer da ciência, estruturando-se esta com o reconhecimento do nada a partir do afeto fundamental da angústia para então se dar a irrupção da verdade.

Mas se a verdade do referido somente se abre ao homem através da verdade da referência, caberia dizer que a própria instância da verdade resta prejudicada. Como o homem constitui a verdade por meio do reconhecimento do nada que se dá na disposição fundamental da angústia, não há que se dizer que essa verdade, pelo fato de partir de uma relação do sujeito que diz com a própria realidade que se diz a partir daquilo que se diz, configura-se como única, configura-se como verdadeira em si. Conseqüentemente, se não há uma única verdade, um único dizer da verdade, como poderia um discurso solado tanto no empirismo quanto no idealismo pretender a verdade se suas prerrogativas de racionalização preenchem o espaço da criação com a vedação da possibilidade de irrupção do verdadeiro a partir da negação do nada? A negativa é evidente: a desertificação é conseqüência. Se de um lado Lacan diz que o sujeito se constitui a partir de uma falta, de outro Heidegger diz que esta falta, apesar de não poder ser apreendida, pode ser reconhecida a partir do sentimento de angústia que se constitui como o afeto fundamental do ser humano. Como mediante o paradigma inerente à ciência moderna há um pensamento que partindo da lógica procura abarcar o todo, negando que nada poderia surgir do nada, defronte um novo paradigma surgido no seio da indefinição pós-moderna surge uma ciência que, ao invés de brotar de conceitos pré-estabelecidos, como queria a ofuscante cegueira moderna, brota da própria falta: floresce do próprio nada.

As repercussões que tal inversão pode ter na produção científica são inumeráveis. Se no período inerente à pré-modernidade o sujeito se estruturava em torno do reconhecimento dos mitos que propiciavam sua identidade, e se no período inerente à modernidade foram os fatores cientificistas que denotaram as definições do homem, na pós-modernidade, pelo contrário, há um sujeito estruturado em torno da falta, em torno do nada, considerando-se que é apenas esta falta e este nada que irão propiciar a existência desse sujeito dada a sua inevitável perspectiva finita. A própria arte pós-moderna, como ilustra Michael Archer, com sua inquietante indefinição e seu aparato conceitual febril, diante do qual não se sabe onde começa a idéia e termina a obra, uma vez que idéia e obra passaram a ser uma coisa só que dispõe da intencionalidade de se construir um conceito visual ou mesmo sensitivo que exale essa indefinição, dirá dessa angústia, dirá da existência desse nada não apenas enquanto ausência, mas enquanto presença que possibilita a criação[xvii]. O espanto que talvez possa advir de algumas obras de arte características da pós-modernidade, isso por conta da angústia, da percepção da presença ausente do nada que resta entranhada em seus dizeres de obra, pode denotar a abertura de uma possibilidade ao homem, uma vez que, no comentário de Leão, somente com o “espanto chega a provocação da temporalidade na forma de uma denúncia e de um desafio: denuncia que o espírito do presente não é a presença, é a ausência do espírito e nos desafia a recuperar na própria ausência o vigor de transformação do espírito”[xviii].

Mediante o reconhecimento da falta, da presença da ausência em contraponto à promessa de apreensão do todo por meio da ciência que caracterizou a perspectiva moderna, restará estruturada toda universalidade inerente à ciência pós-moderna, na qual o discurso se dará em função do reconhecimento da angústia proveniente do movimento de atração/repulsão com o nada. Diferentemente da negação do nada perpetrada pela modernidade, a pós-modernidade, ao dizer por meio de Heidegger e Lacan que é justamente a presença desse nada que propicia a existência da ciência, reverterá os pólos do qual parte a ciência, fazendo com que esta dispare da existência em direção ao conhecimento e não o contrário. Se com o positivismo do século XIX se percebe um reflexo do cientificismo no campo inerente às ciências sociais, com a recorrente proliferação de extremismos sociais que redundam em atos de irracionalismo bretoniano nos tempos correntes se pode notar sintomas do reconhecimento da falta, do reconhecimento da angústia como fator determinante na estruturação do sujeito e portanto da ciência que esse sujeito pós-moderno produz. Como há reconhecimento da angústia, percebe-se um sintoma do nada indicando a sua entificação e não a sua simples ausência na história humana. Além do mais, o próprio homem pode ser configurado como um sintoma do nada, já que em torno deste se estrutura enquanto sujeito.

O que ocorre é que a finitude humana, atravessada pela linguagem, fala infinitamente para ser, sendo que dessa impossibilidade de ser sem estar na linguagem se pode afirmar que o humano fala pela falta, pelo desejo de algo que somente capta enquanto movimento que o perpassa e que tem de habitar para ser. Mas quando o homem fala, junto da singularidade do estilo de sua fala também fala a própria linguagem, o que denota o fato de que a universalidade lingüística fala através da singularidade humana. O que se depreende disso é que quando o homem fala, não é somente o homem que fala, mas também o próprio ser que o possibilita ser enquanto humano submetido à condição finita que o define: a luz dos faróis nasce do oco das lâmpadas. Do reconhecimento desse tartamudear de ruídos e palavrórios que tentam infinitamente preencher a falta que os possibilita é que irá nascer a pós-modernidade entrecortada pelos reflexos da modernidade, traçada enquanto tempo de passagem, de indefinição, produzindo um saber científico peculiar que diz muito do que ela mesma é. Mas ainda que o paradigma pós-moderno aponte uma produção científica que está calcada na falta, ao passo que o paradigma moderno diz de uma produção científica que está centrada na negação dessa falta, pois se crê completo mediante os ideais iluministas que o subsumem, a época atual, por trazer consigo a idéia e o termo da própria modernidade, ainda produz uma ciência que se desdobra na metafísica. Vê-se ainda a modernidade distribuindo as supostas vitórias de muitos setores da comunidade científica, adentrando com seu totalitarismo racional a inquietação de uma época de impasses.

O reflexo mais exato dessa tendência que vez ou outra crispa as dobras da história, pode ser encontrado mesmo no plano político com a proliferação de movimentos totalitários em vários países, sendo que estes se propagam justamente por conta do clima de inquietação que atravessa a humanidade. Essa inquietação, se não conhecida e pensada, sendo traduzida como angústia e como possibilidade de ser por meio de uma perspectiva que a possibilite ser dentro do seu próprio tempo, pode redundar em conseqüências drásticas e inimagináveis. Se Baumam afirma que o Holocausto proveniente da atitude do partido nacional socialista na Alemanha nazista consiste no auge de determinadas promessas da modernidade, uma vez que a lógica foi levada ao seu extremo nos campos de concentração, o que se pode esperar de um tempo que, por não compreender a si mesmo, prefere, em dados momentos, traçar a sua história em torno de uma totalizadora e falaciosa crença diante de um ideal que ao negar a falta característica do movimento democrático nega o próprio nada? O exato oposto do diálogo é a guerra.

Portanto, a discussão acerca da produção da ciência a partir de um diálogo entre filosofia e psicanálise, utilizando para tanto os discursos provenientes de Heidegger e Lacan, incidindo esta no contraponto existente entre o paradigma moderno e o paradigma pós-moderno, isto a partir dos fatores teóricos referentes à ciência, à angústia e ao nada, mostra-se de inelutável premência para o tempo atual. Se a estruturação das revoluções científicas no correr da história diz muito do homem que vive essa mesma história, a compreensão do que ocorre com a produção de discursos científicos a partir de pólos completamente adversos pode dizer muito das prospecções futuras que podem ser traçadas a partir do presente. Compreender a contemporaneidade a partir da sua inquietação, da angústia que lhe é própria e que arvora o discurso inerente ao contraponto entre o paradigma moderno e o paradigma pós-moderno, isto a partir de dois saberes que se interpenetram em seu dizer, como ocorre com a filosofia e com a psicanálise, é fundamental tanto para a produção quanto para a discussão do que é ciência atualmente. O discurso científico existe em determinado espaço e tempo que o subsume e que não pode ser esquecido quando da compreensão desse mesmo discurso, uma vez que da intersubjetividade cambiante entre os dados presentes em um determinado campo cultural provém o próprio estilo de vida contemporâneo.

O que acontece é que o sujeito sempre fala de algum lugar e de algum tempo, mas quando deslocado do lugar e do tempo de onde fala a sua fala, esta será inevitavelmente fantasiosa. Se a atualidade é permeada por um senso constante de incerteza, de penumbra na qual os objetos perdem a distinção e as próprias distâncias não podem ser nitidamente divisadas, uma vez que em certo canto do horizonte a escuridão ainda se arrasta, causando esse mal-estar das coisas que não se definem e que por vezes assustam, é justamente por conta disso que uma compreensão apurada desse contexto é fundamental. Ainda que discussões estritamente epistemológicas possam soar reducionistas e distantes de um tempo que enfrenta desafios cada vez maiores, a compreensão dos seus impasses e perspectivas se encontra diretamente vinculada aos dilemas vivenciados na atualidade. Se o nada é o centro do real, a possibilidade de uma epistemologia pós-moderna se dá diante desse reconhecimento, considerando-se que da aceitação da presença da falta enquanto estruturante do sujeito também pode surgir um senso ético-global mínimo que considere a existência humana como única condicionante para a concessão de direitos em escala mundial – também se admitindo que é o reconhecimento da presença do nada que dá margem a qualquer ordem democrática, vez que não se pode pensar em democracia se há a pretensão de se atingir uma totalidade. Nota-se dessa maneira que a produção científica de determinada época, pensada por meio dos seus pressupostos básicos e suas condições de possibilidade, denota a abertura a um diálogo inter-poli-transdiciplinar que em muito transcende a esfera epistemológica, abrangendo todas as dimensões da existência humana.


[i] FREUD, Sigmund. O mal-estar do homem na civilização. Trad. de ?. Disponível em http://www.opopssa.info/Livros/freud_o_mal_estar_na_civilizacao.pdf. Acessado em 25.08.2011.

[ii] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo – Parte I. Trad. de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

[iii] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo – Parte II. Trad. de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 11ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

[iv] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003.

[v] HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003. p.8.

[vi] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p.203.

[vii] FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos – Primeira parte. Trad. de ?. Disponível em http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000023.pdf. Acessado em 25.08.2011.

[viii] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2005.

[ix] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

[x] LEÃO, Emmanuel Carneiro. Existência e poesia. In: RILKE, Rainer Maria. Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno. Intro. e trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005. pp.17-18.

[xi] NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2003.

[xii] LACAN, Jacques. Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998

[xiii] HEIDEGGER, Martin. O que é metafísica? Intro., trad. e notas de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[xiv] HEIDEGGER, Martin. A coisa. In: Ensaios e conferências. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006. pp.143-164.

[xv] TAILLANDIER, Gérôme. Introdução à obra de Lacan. In: Introdução às obras de Freud, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan sob a direção de J.D. Nasio. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. pp.263-264.

[xvi] DOR, Jöel. Introdução à leitura de Lacan – o inconsciente estruturado como linguagem. Trad. de Carlos Eduardo Reis. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. p.91.

[xvii] ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. Trad. de Alexandre Krug e Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

[xviii] LEÃO, Emmanuel Carneiro. Existência e poesia. In: RILKE, Rainer Maria. Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno. Intro. e trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005. pp.13-14.

domingo, 16 de outubro de 2011

Jam nº 9 (ou "Para um começo").

Não sei o significado de você sonhar com minha morte. Talvez aquela mensagem que enviei pelo Facebook, aliada ao fato de você passar por um momento inquieto, tenha trazido essas imagens ao seu sono.
Imagino suas pálpebras em movimentos leves, seus cabelos caídos nos lábios e seu corpo, encolhido e virado para a parede, absorvendo as fotografias do seu inconsciente. Penso que o quarto estava escuro, que aquela geléia verde da lâmpada estava quieta e que na sua rua, mais que de costume, nenhum jornal era revirado pelo vento e cachorro algum buscava restos pelo lixo. Enquanto todo esse cenário, absolutamente isento de quaisquer destinações ou pinceladas ligadas a alguma racionalidade, desenhava-se ao seu redor, um filme do meu fim passava diante do castanho do seu olhar.
Você disse que minha morte não foi violenta. Disse que morri calmo, imerso em uma tranqüilidade quem sabe parente da calmaria detrás do estádio.
O que me perturbou no seu relato foi o sentimento de você ter notado meu espírito ensimesmado nas mesmas questões da vida quando na morte. Me fez pensar na primeira vez em que reparei você. Aquele seu sorriso por debaixo dos óculos de aro preto, o brilho da sua íris faiscando minha atenção e minhas palavras, grávidas de estruturas medrosas pelo menor caos, ressoando pela sala.
Não sei como as coisas chegaram até aqui. Você não me bajulou, não pontuou minha vaidade com gorduras desnecessárias e nem mesmo precisamos começar tudo ao redor da praça – como sempre havia ocorrido comigo até então. De alguma maneira que escapa ao meu senso, sua pele me ligou a alguma coisa que há muito tempo estava ausente da minha vida. Estrangeiro completo, soterrando ânsias com técnicas para buscar algum sossego que me escapa, eu era aquele que bebia largos goles de solidão a cada final de semana, a cada carne que percorria com mãos desesperadas por algo sincero que de modo algum conseguia encontrar.
Ano passado, depois que uma perda me fez duro, casca presa ao prazer que não percebe o menor sabor, construí ao meu redor uma câmara que me isolava de tudo o que poderia de alguma forma ferir. Não chegou a ser o muro do Waters, mas passou perto. Pensei que minha vida, daquele momento em diante, não passaria de uma ressaca de arrazoados e citações, afogada em verborragias conceituais das quais eu falava, falava e falava – ainda que soubesse da menor ciência havida em tudo que dizia. Turgueniev está certo: “Pretendes a felicidade? Aprende a sofrer”. Foi exatamente isso que me aconteceu.
Revolvi tanta falta, tanta ausência de luz, tantas cinzas e cigarros rebatidos contra o chão ou cinzeiros, tantos copos e areias de puro e pleno vazio, que alguma notícia boa, como diz aquela música do Nenhum de Nós, inevitavelmente teria de vir.
Mas não precisei pedir por favor.
Surgiu ao acaso.
Surgiu você, que nessa manhã nem quente nem fria, chumbo e com ares de chuva que não chega, traz aos meus dedos uma paz plena de saudade serena: não picante ao ponto de arder, não doce ao ponto de enjoar, mas medida e dosada pela tranqüilidade que eu buscava.
Claro que tenho medo. Nossos calendários biológicos (para não falar em idade) não batem. Tenho receio de sufocar sua liberdade com minha impertinência, impedindo que você viva coisas que deve e tem de viver. Tenho medo que alguma espécie de ciúmes, domcasmurrento por essência, aplaque essa sensação de agora e aquele calor que sinto quando abraço suas costas e beijo sua nuca.
Meu pavor se concentra na possibilidade óbvia de que o egoísmo que trago, o qual orbita somente os sentidos do meu umbigo, venha um dia a separar esse sentimento siamês que estamos construindo. Tenho noção da finitude de tudo, do despropósito de toda pretensão que queira achar simetrias no real. Mas você deve entender que o que faço desde aquela madrugada dos meus quinze anos é para propagar a beleza e o amor – palavras e sentidos que provavelmente desconheço e por isso tanto falo, tanto busco.
Por isso seu sonho está certo. Se existir algo como um espírito, se da minha carne morta se descolar uma matéria híbrida, feita de sal, letras e acordes, certamente essa matéria, evanescente e pulsante, nada condigna com lençóis brancos ou roteiros do Stephen King, irá perambular pelo mundo na expectativa de finalmente resolver algumas equações e preencher lacunas de respostas sempre vazias.
Buscarei, porém, vinho.
Buscarei, saiba disso, muito vinho, pois se o espírito realmente existe, se a vida não acaba liquefeita em alguma reação química que dissolva nossas entranhas e conserve apenas os ossos, ele é um alcoólatra inveterado.
“Por quê?”, você pergunta.
Ora!, a resposta é racional e óbvia: que sentido existe em permanecer distante da possibilidade de morrer?
É injusto a vida continuar após a morte.
Simplesmente morrermos é muito mais balanceado, concatenado com certo senso de equilíbrio entre liberdade e igualdade. Mais que isso é um atalho para o álcool – ou seja lá qual droga existir na transcendência.
(O além deve ser uma favela de viciados. O Céu, um motorista emaconhado que não destrói os postes dos santos por sorte e mais nada.)
“E Deus?” – é você novamente: emudeço na conjugação dessas quatro letras. Prefiro apenas não comentar. Não é algo que me cabe – e resolver qualquer pendenga que tenha quanto ao significado ou à personificação dessa combinação é uma pretensão distante, distante demais até mesmo para o suposto espírito dos seus sonhos.
Deve ter sido aí que sua inquietação, a preocupação com as provas da faculdade e com as peripécias da sua irmã, tocou na minha mensagem (longa como o documentário sobre o Santo Sudário que recém havia assistido) e acendeu o isqueiro do seu-sonho-minha-morte (e não fique aparvalhada com esse pequeno jogo de hífens: trata-se de uma evocação tola e literaticida mediante todo e qualquer bom gosto; é besteira, enfim).
Desvendei o mistério? Não, sei que não. Apenas borrei alguns bytes com essa Calibri tamanho 11 que extrai da branquidão da tela o bordado escama de peixe das minhas palavras. Somente quis dizer que meu gostar por você aumenta não na proporção das estatísticas ou das especulações desses balanços que as empresas divulgam nos jornais, mas na nuance das brisas e das madrugadas em que a chuva, nem forte nem leve, prossegue decidida a acariciar nossos ouvidos e as possibilidades que todo quarto suscita.
É por isso que gosto de você: por essa concatenação completamente ausente de logicidade que gosto de você. Gosto dos seus cabelos, dos seus olhos, da sua pele e até do formato do seu pé. Gosto do seu corpo, dos seus seios, do modo como você ri e das coisas que me conta e me fazem ter uma vontade contínua de apertar seu corpo contra o meu e querer sua presença se confundindo com a minha.
Minha morte no seu sonho, de certa maneira me conectou mais ainda a você – e me sinto cúmplice da surrealidade dos seus anseios quando procuro iluminar sua imaginação com minhas composições de signos.
Sei que elas não são boas. Sei da profundidade oceânica de um copo d’água que meus devaneios carregam. Mas nessa manhã de outubro, ouvindo uns passarinhos guerrearem ruídos com o barulho insuportável de um cano de descarga estourado (certamente de um Corcel que passa na rua), tento falar justamente do “não saber” no qual se equilibra tudo o que tenho sentido por você.
O que mais dizer? Acho que chega.
Ao menos meu espírito não está vagando por aí e está aqui, assentado ao papel virtual enquanto procura sua presença na lembrança e quer que os sonhos que nas próximas horas virão tragam você inteira (corpo, ventre e sorrisos) à presença do meu tato.
Quem diria que isso aconteceria? Ninguém, absolutamente ninguém, quanto mais tendo por causa palavras e sorrisos – as minhas palavras e os seus sorrisos, minha linda.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Jam n° 8 (ou "Para um fim").

O segredo do universo está na escova de dentes que uma criança gira com o polegar e o indicador. Solidão é mover o imã do lado de fora do aquário. Pendurado na parede do quarto, o tiro ao alvo espera os dardos de todas expectativas. Mas a revistaria deve ser aberta às oito da manhã e não existe espaço para preocupações. Ela chegará e dirá que nada aconteceu. Retrucar é como engolir cerveja quente pelo sabor da urina. Ser passivo é a regra. Aquecer angústias em um espelho cilíndrico é o presente. Um vento na calçada falará dos cabelos de trinta anos. Cigarro após cigarro, a hora do ônibus é chegada. O motor range na frente dos tijolos expostos. A sorte é um sussurro ao violão para os cães da vizinhança. O temporal é o açúcar mastigado no amargo da língua. Mas tudo vale a pena com uma motocicleta. Quais serão os cogumelos do cardápio? Simulações de vídeo-game ou sinuca nos campos? Orvalho escorre pelas árvores que dormem. O retrovisor, os copos e o enduro do restaurante são o primeiro anúncio de Vegas. Deixar a menina quebrar o balanço é provar a Lei de Newton. Umas moedas a mais não farão diferença. Nas fotos sob o cinzeiro, a aquarela da espera. Pac man come pedestres na enfermaria. Legal é se apresentar e fazer amigos. Se você conheceu um campeão, eu também posso ser um campeão, ainda que beijos não existissem na minha cama. Em círculos é muito mais fácil cortar os cabelos com um desconhecido. Esse é o ritual de passagem que ao entardecer tem seus últimos retoques. Bom mesmo é o folk do sul e os risos do pessoal no bar. True love. True time. Mas nada certo na fogueira das barracas. A poesia é um capacete de astronauta. É Jesus nas nuvens antes de ser religioso. Mas quando acorda, tudo se desfez. As cabines telefônicas não ouvem guitarras do outro lado. Em cada intervalo de árvores, o coração de um cata-vento para pular corda. Escuta fantasmas de insetos que procuram galhos afogados na barragem? Não, só entendo de clareiras no outono e violinos venezianos, agudos como uma folha seca aos olhos de quem recém descobriu o mundo nos seus desejos de fuga. A corredeira é a voz da fonte por debaixo dos pés. Uma pulsação de inverno está no porvir de cada passo. As escoteiras formam monolitos nos solstícios das suas mochilas. E um lugar sempre há para quem está na estrada. A concentração é uma garrafa esquecida pelo que não pode contar. O anel, aquele que estava no dedo da mulher, foi arrancado pelo marido traído. Brincar de Coelhinha da Playboy nunca foi algo suportável. Peixes tropicais, casa nova, loja nova. Nada adiantou. Mesmo que a vida mude no ronco do asfalto e um pré-jazz queira tomar corpo nas curvas, na encruzilhada sempre existe uma placa e um caminhão que fará você mexer as pernas. O jogo se aproxima, descobridor. A chuva desenha estalactites poça por poça. Amanhece, vêm a carona e anoitece. Estadual em frente, o rumo geometriza as trocas dentre reclames de falta de dinheiro. Multas, velocidade, adolescente desolada e nenhuma vontade de saber do zoológico. Ela é alérgica a leões, não gosta de selvas e muito menos de estátuas de dinossauros. Entra uma gaita de boca ao redor dos silos do interior. Uma montanha russa estampa ases de copa pelas portas. Tudo estará perfeito se houverem quartos baratos e sinetas enferrujadas na recepção. Os pássaros são a entrada gregoriana para a esposa e a filha do dono do carro. Mas ele só quer fugir para uma câmera de mão que note cada sobrancelha que levanta e cada carro-choque no parque de diversões. Os cavalos de madeira, o sorvete de baunilha e um abraço ao fim. Alterna o foco e mudam as cores. Vou atrás dos meus amigos quando as luzes acenderem e tudo for imagem no telão. Melhor o urso como companheiro para o leite, já que gordos balançam na danceteria. O resumo é um píer abandonado que precede a competição. Mas o peito dói como nicotina na garganta. Os dardos estão aqui por mera compaixão inglesa. Viciados vêm e vão sem saber que você existe. Encontra ela, beija seus cabelos castanhos e conversa um pouco. Se nada der certo, acaba assim, defronte ao mar, com quaisquer palavras que digam do cansaço dela e seu. Nada teve um por quê. O travesseiro fundo de ausência foi a encosta de toda lágrima. Mas perdoa. Você olhava o mundo pela vitrine e pensava que ela também queria isso. Dê as chaves e descubra o que existe depois da esquina sem rancor ou mágoa, apenas com a vontade de conhecer aquilo que só havia nas revistas. Ela será feliz e você também com uma motocicleta nova que só agora você viu que é uma lambreta. Adiante, apenas a liberdade da estrada. E o único segredo é aceitar um piano ao fundo e um sorriso no rosto. A escova de dentes queimou, o alvo foi esquecido e o aquário é passado. Tudo está na imprecisão de ser e dormir às oito da manhã. Agora é seguir.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Jam nº 7.

Escrever é desaprender. Andar é tropeçar. Não existe linha reta para quem se arrisca. Se há traço, é virtualidade geométrica. Retidão é moral escassa. Disso que se destila literatura.
Mas pensar sobre isso ao fazer literatura, faz com que a literatura seja obstruída na medida em que a palavra cega o objeto. Racionalizar o ato é anular o ato. Por isso a literatura é só. O escritor não tem amigos para sua arte. Conversa de maneira incessante com todas as vozes que sussurram nos seus ouvidos. Alguém pode chamar isso de psicografia. Mas responder a humanidade da escrita com uma metafísica dos medos é fazer com que o projeto humano morra. Por essa razão não é justo culpar o invisível pelas criações que fazem com que o mundo seja mundo e com que nós sejamos nós. Seria no mínimo uma tremenda injustiça com aqueles que estão eterna e finitamente à deriva e só por conta disso existem.
Pensar nesse existir implica imaginar paisagens: paisagens que podem ser das cores que você quiser, mas em sua maioria serão amarelo ocre – porque tudo seca tudo: a flor seca a árvore, a árvore seca a terra, a terra é secada pelo homem que despedaça a árvore e coloca a flor em um vaso para morrer em uma semana. Tudo assim unitário. Tudo assim singular. Fazer literatura é brincar de hiena: quanto mais carniça melhor. Perguntar a raiz dessa tonalidade é demais. Convém aceitar as palavras como elas se apresentam aos sentidos. Pretender mais é pensar na estrutura das frases e assim mostrar o que não deve ser demonstrado. Se fosse, a literatura inexistiria.
Mas escrever sobre isso é convencer você de que o que você faz é literatura. A teoria é que dá a razão da prática. Funciona como uma mentira domingo pela manhã. A voz tentará dissuadir você da sua intenção. Você ficará nervoso, tentará abandonar seu cobertor factual. Mas no final ensaiará uma cara de coitado e falará aquilo que inventou por sobre aquilo que fez. O lábio tremerá e as palavras sairão rápidas, mas nem por isso isentas de convencimento. “É necessário”, você admite para si, ainda que saiba que isso também é mentira, “garantir o carinho antes de preservar a franqueza”.
Um dia você pensará: “como hierarquizar o que é humano de você para você e que apenas virtualmente irá em direção aos outros?” Ouvir que todos querem ser ouvidos é uma coisa. Ser realmente ouvido é outra. O espaço que existe entre aquele que fala e aquele que ouve é que constrói o sentido. Espaço que só existe enquanto obscuridade. Sua essência está distante da sua forma. Talvez nem carregue uma essência. Dizer que o silêncio o compõe não é um erro. Seria se houvesse uma explicação do silêncio, uma violência no silêncio. Toda palavra é um estupro porque nasce da ausência de consentimento. Aparece, penetra e morre. Permanece o silêncio e seu corpo pleno e vazio.
Vale muito contar algo, portanto. Vale também descrever, mesmo que tanto contar quanto descrever sejam palavras perfeitamente equiparadas quando se fala da escrita. Do contrário, não existiria a necessidade da palavra para organizar aquele que somos: bastaria a fala. E acaso não é ela mais justa com a nossa condição, esvaecendo logo que se faz? O que ficará dela será só lembrança. Dessa lembrança é que construiremos quem somos, pois aquele momento se fará representação em seguida – como um show onde o que mais se vê são câmeras apontadas para o palco do que a vivência do espetáculo, já que viver o espetáculo implica em conviver com o outro.
Conclusão? A alteridade atrapalha. Imagine então para quem escreve. Aquele que escreve não pode ser interrompido. Os fluxos de raiva serão inevitáveis e redundarão em socos e divórcios. No primeiro caso há a polícia, no segundo a Judiciário. Na parcela que resta entre a prevenção e a correção, acontece o escrever: “pra quê importunar quem estava quieto?” Não interessa se são seis ou sete da manhã: importa é que as palavras estão se fazendo vida na proporção da organização que deflagram naquele que escreve. Esse terá mais dívidas com as palavras do que com seu próprio nome. Afinal, listas sempre são queimadas no final, isso quando não são enviadas para um museu e esquecidas, tornando-se pouco a pouco taxidermias de si mesmas.
O cheiro delas é que persistirá por muito tempo se isso ocorrer. Cheiro amarelo, amarelo ocre. Antes de ser enterrado, talvez você invoque algumas para sua lápide e chame isso de "epitáfio". Caso ocorra, poderá vislumbrar a orelha da sua morada final e terá de se contentar com essa visão. Após ela ninguém lhe escutará: tudo quanto você fez restará opaco, morno, não queimando e muito menos cozinhando. Alguém descobrir seus feitos vinte anos depois é possível. Mas a esperança não é válida para quem fala. Se fosse, não falaria, porque a fala expressa uma ausência e nada mais.
A folha ou a tela são brancas. As letras quase sempre são pretas. Nessa condição é que caminhando você perceberá que se o branco é a união de todas as cores, o preto é a ausência de todas as cores. O preto é opacidade, é condição. Desse horóscopo surgirá seu sentido: interpretação da completude, grito da ignorância, desfazer plural e impossível. Dele você poderá teorizar. Isso trará calma. Só com o tempo é que haverá mais e mais perguntas no patamar da redução das respostas. Essas perguntas serão bolhas: sabão e bolas subindo em direção à lua. Confundir a transparência com a escuridão será sintoma da sua condição. A geometria desaparecerá. Caixas deixarão de ser caixas e você duvidará que em algum momento caixas existiram. Permanecerá a proeza das equações, dos números e letras que sua vontade moldou.
Quando essa vontade for moldada, começarão a surgir importâncias. Essas importâncias não poderão ser carregadas em uma sacola. Existirão no máximo enquanto ilustração da sacola, enquanto designação de um suporte nato. Mais que isso será pura paranóia e motivo para choques. Se jogarem você em uma banheira cheia de gelo, não há o que estranhar. Você pediu pra levar. Continuando no limite da resistência, você iria muitos anos. Mas como você resolveu baixar a guarda, os arqueiros invadirão seus terraços e levarão você embora. Você será colocado em uma gaiola e levado por uma trupe e por um exército.
No caminho você tentará dissuadir alguém. Mas perceberá que seus algozes são desprovidos de ouvidos. Seus gritos serão completamente inúteis e você se dará conta de que o carinho se confunde com a vergonha. A vergonha nasce da afronta moral. O carinho nasce do fato de você não suportar essa afronta. Daí o significado do castigo: a gaiola e banheira de gelo. Você rezará um Glória ao Pai se houver nevado nesse dia, pois nu na gaiola você morreria mais rápido. Mas parando de cidade em cidade para que o exército estupre as mulheres e para que a trupe faça suas apresentações, você perceberá que a neve não chegará.
Tentando situar no tempo o seu desejo, construirá um alicerce no mês de julho. Pelos ingredientes com os quais o vento toca sua pele, você se dará conta de que já terão passado no mínimo dois meses de rotina e nada de neve. Implorar ou rezar seriam opções. Mas implorar para o cavalheiro que encabeça a fila? Rezar para o brasão do seu escudo? Não que eu queira assustar, mas isso será o mesmo que sobreviver ao sal do oceano. Nesse tempo você beberá sua urina. Chegará um ponto em que comerá suas fezes. As fezes e a urina, contudo, tornarão escassa sua resistência. Chegará então o fim sem lápide, mera ocorrência natural de um fato banal: você.
Como resistir? Postergando páginas para gentes do futuro? No metrô lerão sua obra. No coito lerão sua obra. Lerão sua obra principalmente na presença dos outros. Você será a razão da misantropia do século XXI. Você acompanhará todos para todo canto. Bolsas e pastas serão seu esconderijo. Querendo sair, não haverá qualquer resistência. Você sairá e pronto. Seus pêlos crescerão mais rápido, suas orelhas ficarão pontudas e retangulares e você nada poderá fazer. A aniquilação total deixará no mundo apenas a sua palavra benzida ou não, tendo você mastigado a hóstia ou não.
Os filhos talvez continuem seu legado. Mas um dia todos cansam de chorar. Sua mulher arranjará outro. Seu cansaço apaziguado irá então aproximar outros: filhos e psicólogas, viúvas e pretendentes. Tendo seu filho um ou dois amigos, bastará para as vodkas que ama. Entornará copo a copo o prazer das desproposições. Caindo na Igreja, na praça, tudo será como planejado. Será uma trama sem maiores enleios. Tombo após tombo, tropeço após tropeço, chegará talvez no ponto daquilo que fazia para então deixar de fazer e começar a falar. A geração dessa fala será o passo seguinte. Uma geração sem útero, sexo ou carinho. Uma geração nervosa. Mas nem por isso, menos uma geração.
Aparentada com todas as gerações precedentes, haverá a tentativa de definição. Haverá o ímpeto do conceito. Precisões e necessidades inúteis estarão na sua fala. Você teorizará pela voz de outro aquilo que disse ontem. E desaprenderá com todos os seus tropeços: o ciclo se fechará.
*Com algumas poucas modificações, esse texto foi primeiramente publicado em 24 de julho de 2009, sob o título "Postas sobre Anil Duran". A publicação se deu no meu blog antigo, o INSUFILME, sendo que seu link é: http://insufilme.blogspot.com/2009/07/postas-sobre-anil-duran.html. Decidi pela republicação por se tratar de uma bela amostra do que venho tentando fazer em alguns escritos que até o momento permanecem conhecidos apenas pela memória do computador. Espero ter suficiente fôlego e coragem para que eles venham a tomar o corpo que pretendo.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O MUNDO EM CONVULSÃO: A AMBIVALÊNCIA SÓCIO-POLÍTICA CONTEMPORÂNEA.

A escalada mundial de protestos, manifestações e revoluções vista nos últimos meses demonstra uma nova face da ação sócio-política global. Ao contrário de um atrelamento partidário ou mesmo restrito aos limites nacionais, o que se vê são lutas cujo estandarte encontra eco na reivindicação de direitos básicos aos poucos retirados da esfera estatal pelo poderio econômico-financeiro protagonizado pelas empresas transnacionais e pelos governos que com elas compactuam. Se na primeira metade do século passado a movimentação política detinha um cunho vertical, buscando a transformação social a partir da realocação dos personagens políticos de acordo com uma nova ideologia que viria a se entranhar no organicismo estatal, o início deste século aponta que análises reducionistas que identifiquem um ou outro ato com libelos direitistas ou esquerdistas não mais dão conta da realidade que procuram abarcar.

Nesse contexto, o primeiro fato que deve ser investigado condiz com a expansão do espaço público propiciada pela internet. Não existe mais qualquer sentido em observar blogs e redes sociais como meros redutos narcísicos – como ainda intentam algumas correntes da psicologia, por exemplo. Contrariamente, os meios de interação comunicativa contemporâneos possibilitam engajamentos massivos que do virtual ao material traduzem anseios democráticos antes calados pela impossibilidade do diálogo. Se os jovens estão cada vez mais conectados aos seus computadores e cada vez menos integrados ao seio familiar, como atestam alguns conservadores, isso apenas diz de um improvável diálogo intergeracional ocasionado por uma drástica inversão da percepção do estar-no-mundo na atualidade.

Isso se torna nítido quando se nota os standards de sentido das causas contemporâneas. Mesmo que ainda seja necessária a luta por condições dignas de trabalho, educação e segurança, cresce a cada dia o engajamento com a causa ambiental. Extrapolando os limites do Estado-Nação e abrangendo a própria possibilidade da persistência da vida em nível global, o envolvimento da juventude com essas questões pode ser diagnosticado como uma lenta e gradativa inflação do senso de pertencimento planetário. Ainda que a intensa aproximação de culturas e concepções de vida diversas possibilitada pelos meios de transporte e comunicação igualmente alavanque o surgimento de conflitos étnicos, raciais, sexuais e sociais, é fato que a possibilidade de concretização futura de uma cidadania cosmopolítica se inscreve nas dobras do presente, manifestando um anseio de união que encontra entraves por toda parte.

Esses obstáculos, claramente demonstráveis pelo aumento da ortodoxia religiosa, pelo renascimento dos nacionalismos e pelo preconceito étnico, racial, sexual e social, refletem a importância que a aparente convulsão global de protestos, manifestações e revoluções traz para a construção de uma diferenciada noção de estar-no-mundo. Distante da tentativa de tomada de poder por algum partido, esses movimentos pretendem a universalização dos direitos humanos como uma iniciativa contra-hegemônica à globalização predatória acelerada pelo império econômico-financeiro expresso por uma minoria mundial. Se os meios de comunicação tradicionais pré-internet serviam apenas à imbecilização maciça, reproduzindo-se como uma indústria cultural aos moldes frankfurtianos que servia tão-somente à produção de títeres do sistema, os horizontes abertos pelo cenário contemporâneo, embora ainda precários em sua intenção de concretização e efetividade, despontam um palco sócio-político que aos poucos pode transformar a realidade sócio-econômica mundial – modificando, assim, toda lógica do sistema.

Ocorre que a estigmatização dos protestos ocorridos na Inglaterra, rotulando-se as manifestações como meros atos de vandalismo e arruaça, impede uma percepção apurada da população quanto ao teor reivindicatório manifestado por esses atos. Além disso, quando há uma preferência dos meios de comunicação comandados por grandes estamentos midiáticos transnacionais na cobertura dos eventos ingleses acompanhado de uma sonegação das igualmente importantes ocorrências atualmente vistas no Chile e na Espanha, vê-se que o engajamento sócio-político contemporâneo ainda encontra imensos óbices sistêmicos e culturais para que tenha uma maior recepção por parte das massas. O gérmen da revolta é percebido pela maioria, aprisionada em veios interpretativos totalmente impulsionados pela ausência de um pensar reflexivo, racional e crítico, como simples intenção criminosa, tentativa de quebra de uma paz inexistente, redundando em um trato dessas manifestações que encontra respaldo na ação violenta dos agentes estatais. Óbvio é que não se pode negar que no seio e nas conseqüências desses atos existem atores sociais que se aproveitam da movimentação para materializar intenções que nada tem a ver com a semente da própria revolta. Mas entre reconhecer esse fato e tatuar nesses movimentos a pecha criminosa, existe uma grande diferença.

É necessária a construção de um pensamento distante do etiquetamento social. A convulsão contemporânea desencadeada pela movimentação sócio-política e pela decadência do sistema econômico mundial deve ser percebida em sua palpável ambivalência. Se por um lado traz consigo a noção de que tragédias se avizinham e de que tempos sombrios estão rondando o futuro da humanidade, por outro pode suscitar o nascimento de um momento cosmopolítico que possa se traduzir em efetividade política na forma de instituições que independam ou trabalhem em conjunto com os Estados para a construção de um espaço público global, espelhando meios que possam garantir a vida em sociedade no âmbito planetário, com respeito aos direitos civis, políticos e sociais amalgamados em uma cidadania que surja a partir de uma affectio societatis mundial, unindo a humanidade ao redor de um propósito solidário que ultrapasse fronteiras com alicerce nos direitos humanos e na projeção de um futuro comum e justo.

É claro que os desafios da contemporaneidade são imensos e necessitam de um longo espaço de tempo para que encontrem alguma resolução. Mas também é nítido o parto de uma nova noção do estar-no-mundo, a qual de modo invariável aponta para a superação de guetos de sentido na direção da emersão de uma outra possibilidade de concepção da realidade sócio-política. Trata-se de um processo em marcha, onde a simultaneidade de circunstâncias, muito mais do que sua sucessão, dita a ocorrência de cenários de constante entrelaçamento entre local e global. Essa possibilidade, afastada das dicotomias clássicas (esquerda/direita, nacional/estrangeiro), aos poucos dá espaço à emergência de um discurso não circunscrito apenas à precariedade de uma sociedade que orbita o lucro pelo lucro, o consumo pelo consumo. Talvez a humanidade esteja às portas de uma transformação radical que afetará as bases de tudo aquilo que até agora considerou como certo e inquestionável. Para que esse limite seja ultrapassado, a compreensão profunda dos protestos, manifestações e revoluções contemporâneas é essencial. Do contrário, a expectativa de mudança resultará em mera letargia pós-delirium tremens: confortavelmente anestesiada, será um proscrito sonho que repentinamente acaba.