quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Carta aberta aos(às) candidatos(as) a prefeito e vereador(a) de Santo Ângelo.

Senhores(as) candidatos(as).

Sou um eleitor como outro qualquer. Em função dos direitos políticos que trago, meu voto será contabilizado da seguinte forma: 01 (um) – e nada mais. Mas tenho de admitir que o fato de escrever para um jornal de grande circulação no município e na região, responsabiliza-me moralmente no sentido de trazer para o(a) leitor(a) contribuições minimamente válidas ao seu cotidiano. Caso algum(a) dos(as) senhores(as) acompanhe minha modesta e recente coluna neste diário, deve ter ciência que trato de assuntos diversos, abrangendo, como diria Douglas Adams, “a vida, o Universo e tudo mais”. Hoje, porém, decidi, consciente do meu ínfimo papel, fazer alguns pedidos aos(às) caríssimos(as) senhores(as) candidatos(as). Infelizmente não poderei embasar legal e logicamente meus pedidos em função do curto espaço destinado a este texto. Da mesma maneira, não citarei nomes e me restrinjo, ciente das minhas limitações e pleno de respeito apartidário, aos termos que seguem.

Em primeiro lugar, trato das promessas. Assim, peço que não prometam a escrituração de terrenos em área de proteção permanente às margens do Itaquarinchim, peço que não prometam a extinção de todos os CCs da Prefeitura e da Câmara de Vereadores, peço que não prometam a distribuição de mais de setecentas bolsas integrais e parciais para universitários do município, peço que não prometam a doação de material de construção para toda e qualquer pessoa que o requisitar à respectiva Secretaria, peço que não prometam isenções ou absurdidades no que diz de impostos essenciais à vida financeira do município, peço que não prometam cargos a eleitores(as) com a simples intenção de captar seu voto e peço que não favoreçam quaisquer correntes religiosas com relação ao que diz da realização de eventos e demais festividades na cidade. Com relação às promessas, os(as) senhores(as) candidatos(as) haverão de concordar que os(as) eleitores(as) de hoje são melhor informados(as) que os(as) eleitores(as) de ontem – e que, compulsando mesmo fatores legais que possam entrar em questão, muitas dessas “obrigações assumidas para o futuro” são basicamente de impossível cumprimento.

Em segundo lugar, trato da campanha. Assim, peço que não comprem votos por meio de presentes na forma de obras universitárias, peço que não procedam com o pagamento de festas de casamento e de aniversário, peço que não distribuam panfletos anônimos difamando determinados(as) candidatos(as), peço que não paguem R$ 400,00 para um(a) morador(a) instalar material de campanha em frente à sua residência, peço que não financiem reconstruções de moradias atingidas pelo recente temporal que atingiu a região, peço que não digam que um(a) eleitor(a) perderá seu benefício assistencial concedido pelo INSS caso o(a) senhor(a) não venha a se eleger, peço que não insuflem ânimos violentos em seus cabos eleitorais, peço que na noite que antecederá as eleições não impeçam a livre circulação de pessoas em determinados bairros e peço que mantenham a campanha que se dará nos próximos dias em um nível civilizado, racional e cortês, respeitando a oposição e rebatendo argumentos com calma e coesão. Com relação à campanha, os(as) senhores(as) candidatos(as) haverão de concordar que crimes são crimes e devem ser interpretados como tais – e que, embora o Brasil seja um país essencialmente patrimonialista e clientelista com respingos coronelistas, os(as) senhores(as) detém o dever de reverter esse cenário em prol do amadurecimento da democracia brasileira.

Em terceiro lugar, trato do amanhã. Assim, peço que visualizem os problemas da cidade não “jogando” a responsabilidade para administrações passadas ou atuais, mas buscando soluções que não estejam puramente relacionadas a interesses eleitorais ou picuinhas entre grupos que de forma alguma atentam aos interesses da coletividade. Peço também que, caso venham a assumir o cargo que almejam, os(as) senhores(as) se comprometam com os princípios republicanos afeitos ao respeito à dignidade da pessoa humana e condicionados principalmente pela fraternidade, pela igualdade, pela liberdade, pela humanidade e pela diferença. Peço ainda que tenham perfeita noção de que suas concepções morais de qualquer natureza, normalmente não estão “casadas” com os anseios coletivos – sendo que são estes anseios e desejos que os(as) senhores(as) representarão caso venham a se eleger.

Tendo em conta tudo quanto falei acima, senhores(as) candidatos(as), respeitosamente peço hombridade, civilidade, humildade, inteligência, compromisso e honestidade – qualidades humanas que existem independentes de partido, instrução, credo, cor, sexo ou preferências futebolísticas.

Contando com sua compreensão e confiança,

Eduardo Matzembacher Frizzo.

Santo Ângelo (RS), 27 de setembro de 2012.

domingo, 23 de setembro de 2012

UM CANTO TODO FEITO DE MUDANÇAS.

Semana Farroupilha. Rio Grande do Sul imerso em comemorações. Emoções afloradas, bailes aqui e acolá, seres com pilchas cheirando à naftalina e escolas levando alunos para cafés campeiros nos CTGs. Acho tudo isso muito bonito. Condiz com certa unidade cultural que habita a terra sulina. Mas ao mesmo tempo, acho indignas quaisquer atitudes tradicionalistas puristas. Isto é: sujeito acha que apenas uma e só uma vertente cultural detém valor. Trata-se de uma postura totalmente arcaica, preconceituosa e nada afeita aos tempos atuais. Causa, inclusive, uma opressão moral e atitudinal exposta claramente pelo conservadorismo gaúcho que se soma a determinado bairrismo caolho e sem razão que carregamos.

Fato é, porém, que já tentei enveredar pela cena musical como compositor nativista. Escrevi algumas letras e compus canções, sempre em parceria com meu amigo Antonio Fontoura. Pensando sobre isso, é que hoje decidi publicizar um escrito que me vazou há tempos e que ainda está parcamente musicado como uma milonga. Em suas linhas, expressei minha convicção de que inexistem parâmetros certos ou errados em se tratando de manifestações culturais. Também evidenciei que não me cabe, como homem da cidade, cantar coisas de uma realidade campesina que desconheço totalmente. Por fim, busquei uma vertente poética afeita à necessidade de união, fraternidade e convivência pacífica entre diferentes, tendo em conta nossa inevitável solidão cósmica e a perspectiva certa e inafastável da nossa finitude. Penso que apenas assim poderemos atingir um novo nível de desenvolvimento humano, desapegado de localismos que nada nos dizem afora seu teor anacrônico – mas conectado com uma noção planetária envolta em um senso de unidade global.

Por esses motivos, consistindo em uma modesta e descompromissada homenagem à Semana Farroupilha, arraigada ao significado pessoal que visualizo no dia 20 de setembro, segue “Um canto todo feito de mudanças”, letra que escrevi com base no ideário que resumidamente expus acima, o qual traz como única vereda um sentido profundo de liberdade e companheirismo existencial.

Não quero mais cantar essa saudade / Das coisas que não pude conhecer
Não quero mais cantar essas paisagens / Que só a imaginação pôde trazer
Não quero mais cantar só por um chão / Se não há uma bandeira que nos une
Nem quero mais cantar o coração / Que faz a minha vida mas me pune
Não canto mais por algo ou por alguém / Porque sei da fraqueza da minha voz
Só canto porque vejo bem além / Alguma ideia que une a todos nós

Por isso que meu canto é de futuros / É feito de amanhãs e esperanças
Por isso que meu canto é pela união / Da terra e do homem pra mudanças
Distantes de passados ou presentes / Que cortam essa noite do agora
Mas relampejam antes do poente / As mãos que não cansaram da demora

Sabendo do meu canto sei que devo / Cantar não só respeito ou palavras
Que morrem sem saber que a cada rima / Se tornam nada mais que umas escravas
Meu canto não pede pra ser medido / Por aqueles que julgam a canção
Porque todo seu corpo é tecido / Com notas livres de toda opressão
Meu canto se quer som não só da voz / Que pra agradar só canta o que convém
Porque meu canto vai bem mais além / De toda solidão que há em nós

Por isso que meu canto é de futuros / É feito de amanhãs e esperanças
Por isso que meu canto é pela união / Da terra e do homem pra mudanças
Distantes de passados ou presentes / Que cortam essa noite do agora
Mas relampejam antes do poente / As mãos que não cansaram da demora

Por uma voz que não seja só uma / Mas seja a voz de todas as esperanças
Da terra e do homem pela união / De um canto todo feito de mudanças

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

RUSSOMANNO E O "RELIGIOSISMO" CONTEMPORÂNEO.

A onda de "religiosismo" atual pode ser vista como um reflexo antagônico do enorme desenvolvimento na área técnico-científica presenciado nas últimas décadas. Na tentativa de sonegar evidências, por absoluto e puro temor as massas rumam na direção do "desconhecido", do "místico", o qual não se manifesta apenas em tantas facções neo-pentecostais pelas quais cruzamos de esquina em esquina, mas também na propagação absurda de "Teorias da Conspiração" e demais "espiritualismos" encapsulados nos best-sellers do momento. 

Além disso, quando há o reconhecimento nítido de que tamanhos avanços morais, éticos e jurídicos tidos nos últimos trezentos anos advém da propagação de uma cultura laica e secularista, também há a percepção de que, sendo secularista, essa cultura varia enquanto espaço-tempo, não possibilitando abertura para demandas comportamentais que adjudiquem um viés inquebrantável e inquisitorial por se tratar de uma posição laica. Como vivemos em uma realidade marcada por preconceitos crescentes, algo palpável na contemporânea postura dos países europeus quanto aos estrangeiros, pode-se afirmar igualmente que essa reação é simetricamente negativa em relação ao transcorrer do desenvolvimento histórico, sedimentado pela tentativa de aceitação do outro enquanto igual.

Para que possamos perceber outras manifestações da tendência que cito, basta observar a crescente preferência por Celso Russomanno na corrida pela prefeitura de São Paulo. Representante do PRB (Partido Republicano Brasileiro), o qual consiste no braço político da Igreja Universal do Reino de Deus, Russomanno afirma, dentre outras declarações, que deseja "uma igreja em cada esquina da cidade". Defensor da PEC 99/11 (a qual modificaria o art. 103 da CF/88, possibilitando que associações religiosas tenham capacidade para propor ações de constitucionalidade e inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal), Russomanno inclusive consiste em figura pública brasileira que detém interesses casados com o atual discurso de alguns baluartes do Partido Republicano dos EUA (os quais defendem a extinção do ensino evolucionista nas escolas públicas, sendo este substituído, ipsis literis, pelo ensino criacionista). 

Dentre as várias conclusões que podem ser retiradas de todo esse cenário, a principal quem sabe esteja para a necessidade de permanecermos vigilantes. A igualdade entre os cidadãos apenas se perpetua com a expansão das liberdades, a qual, por sua vez, dá margem ao surgimento da diferença como sua própria condição. Trata-se de um palco teórico/prático complexo que talvez possa ser parcamente resumido da seguinte maneira: quanto mais liberdade detenho, mais posso afirmar minha diferença, considerando-se que quanto mais pessoas detiverem a liberdade que detenho, “mais iguais” nos sentiremos na afirmação dessa diferença, dessa singularidade. Assim se nota que atrelar o futuro jurídico-político de um país a concepções dogmáticas, na contramão de um pensamento de base iluminista que modificou as relações sociais no transcorrer dos últimos séculos, trata-se de um regresso tremendo, visto que daria margem para a transmutação de concepções morais (por natureza, individuais) em concepções éticas e jurídicas (por natureza, coletivas), o que de forma alguma é postura republicana. 

O problema se acentua quando percebemos que grande parte da população, afetada por um bom-mocismo tacanho, por um politicamente correto furtado de auto-crítica, por um anti-intelectualismo arrogante, segue líderes e tendências da estirpe, apenas denotando a necessidade cada vez maior de discussões sérias e profundas com relação a temáticas do gênero. Não que estejamos à beira de um novo Estado Teocrático. Compulsando a história, seria algo que muito dificilmente viria a ressurgir. Mas que há a possibilidade de uma transmutação brusca de valores individuais conservadores em mecanismos de controle social totalmente excludentes, totalmente alheios à diversidade, isso é inegável.

domingo, 16 de setembro de 2012

SETE BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE NADA DEMAIS: PARTE PRIMEIRA.

Uma sociedade se torna bizarra a partir do momento em que pensa a si mesma como normal. Esse é um dos grandes males do bom-mocismo e do anti-intelectualismo brasileiros. Aos olhos da maioria, você só tem valor se é politicamente correto ou se aponta soluções. Mas as pessoas esquecem que a vida é uma novela mexicana escrita por um Shakespeare disléxico – e que todo “destino” é uma rodoviária disfarçada de asilo. Por isso é que a cada dia que passa me torno mais anarco-punk niilista.
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O medo vendido e revendido é o único produto que sustenta o sistema atual. Risco de assalto. Risco de doenças. Risco financeiro. Risco de perder a mulher. Risco de sofrer mais riscos. Dá pra entender essa onda de misticismo besta só olhando para o fator “risco”. Quando a situação fica feia, a primeira coisa que buscamos são fantasmas: fantasmas do fim do mundo, dos ETs ou da tal da “moralidade”.
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Pessoal está atrás de bons salários, não de bons empregos. Poucos percebem o fato de que trabalhar é vender seu tempo, vender sua vida. Quando os objetivos se direcionam somente para a possibilidade de consumo, confundindo suas veias com possíveis felicidades, há um desgaste tremendo da potencialidade humana. Razões para o comportamento geral andar nessas plagas? A principal é o medo: esse monstro metafísico que nos trava a liberdade e a consciência da liberdade.
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Ter foco? Privilégio das lanternas. Ter “vida pessoal”, “vida profissional”, “vida amorosa” ou “vida sexual”? Trata-se de algo que certamente tem a ver com aqueles arquivos divididos em mil gavetas. Coisa mais pequena, mais reducionista e precária, essa economização da existência, como se tudo pudesse ser expresso em manuais, em gráficos, em delimitações. Bom mesmo é aceitar o caos – e perceber que por mais que queiramos, o vento não possui nenhum esqueleto que diga seu início e seu fim.
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Se considerarmos que escolhas são necessárias, a vida não é feita de escolhas, mas da necessidade de escolher. Esse é o principal motor das nossas inquietações, acionado pelo desamparo de saber que inexistem verdades absolutas e que toda escolha, ao fim e ao fundo, consiste também em uma resignação. Há como ser diferente? De modo algum. Somente assim pinceladas de felicidade podem atingir nossos olhos e nossa boca.
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Falar em “destino” é negar a possibilidade humana de mudança. Mais ainda, é negar o fato de que acima de tudo, embora constantemente não queiramos admitir, estamos, sempre e cada vez mais, completamente condenados à liberdade. Essa é a causa da maior parte dos nossos problemas, mas também de toda e qualquer alegria que possamos vir a ter.
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Falta-nos menos moral e mais ética. Falta-nos menos deuses e mais perguntas, menos “humanos direitos” e mais direitos humanos. Falta-nos menos sorrisos e mais amigos, mais abraços e menos tapinhas nas costas. Falta-nos mais “por favor” e “obrigado”, sem obrigações. Falta-nos mais vitalidade e menos medo, menos idiocracia e mais sabedoria, menos amor no Dia dos Namorados e mais amor na procura pelo amor. Falta-nos deixar de viver na angústia da solidão e no medo da companhia. Falta-nos, enfim, mais reflexão e sensibilidade. Mas fundamentalmente, falta-nos menos pessoas que se assemelham a salsichas enlatadas e mais pessoas que sintam profundamente o significado da palavra “liberdade”.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

POEMINHA DE FLORAÇÃO.

Vivemos uma primavera antecipada. A floração começou. “In Bloom”, diria Kurt Cobain. Basta circular pela cidade pra perceber. Sem contar o calor que fez em agosto, coisa estranhíssima. Onde já se viu trinta graus em pleno inverno? Conversando com pessoas dos seus sessenta, setenta anos, descobri que realmente foi uma raridade. Há décadas algo assim não ocorria. Desconheço as causas, porém. Quem sabe, o aquecimento global. Talvez, pura birra do tempo. Ou uma sacanagem de São Pedro.

Mas o que tenho percebido, é que existe um desânimo geral no ar. Uma espécie de “semi-depressão coletiva”. Não tenho credenciais médicas para qualquer afirmação embasada, mas converso com muita gente todos os dias e a sensação é palpável. Minha amiga Ana Lara Tondo disse que deve ser algo no ar ou na água. Já minha amiga Kátia Goretti, falou que é simples questão atmosférica, fruto da estação. Francamente, não faço ideia. Mas que se trata de algo evidente, isso é claro.

Fato é que decidi pensar no assunto e cheguei a uma conclusão: mais provável é que seja culpa da rinite alérgica. Oito entre dez pessoas sofrem disso. Nariz escorrendo, olhos coçando e espirros pra todo lado. Uma beleza! Manter a concentração no trabalho ou nos estudos, torna-se sofrível nessa época. Isso que nem levei em conta a constatação de que, se o inverno está assim, imagina o calor que fará no verão. Contas de luz virão estratosféricas e seres que padecem de pressão baixa desmaiarão pelos cantos.

Mas que nada. Dentre ranhos e lágrimas, a vida seguirá e o ano, quando menos esperarmos, acabará. Ou será que não chega a isso? Dizem os Maias e toda aquela gente que se interessa por baboseiras místicas ou pseudo-científicas, que dia 21 de dezembro de 2012 é a data limite de tudo. Como um iogurte com prazo de validade estourado, nosso planeta deixará de ser habitável. Pode? Não duvido de nada. Mas enquanto isso não acontece, sigo respirando gás carbônico, brabo com o novo acordo ortográfico.

Por falar nele, pense comigo: qual o sentido de escrever “ideia” sem acento? Tudo bem que haja todo um fundamento gramatical pra isso. Mas a palavra “ideia” perdeu seu caráter de “novidade” ao ser grafada sem acento. Resumindo: foi-se ralo abaixo o “plim!” da lâmpada do Pato Donald representado pelo acento agudo. Os caras que fizeram essas novas regras deveriam ter um pouco de senso estético. Mais leitura de Haroldo de Campos e Décio Pignatari poderia evitar impropérios formais do tipo.

De qualquer modo, teremos que nos adaptar a tudo isso. Mas será que devemos nos adaptar ao desânimo? Óbvio que não. Seria entregar os pontos e aceitar o cárcere das sensações. Se “filosofar é aprender a morrer”, como disse Montaigne, pensar sobre nossa condição, seja ela qual for, é segurar as rédeas da sua superação. Funciona como uma sessão psicanalítica de si para si, na qual você delimita os quadrantes da sua existência, procura alguma racionalização possível e acha saídas para este labirinto construído pela bioquímica cerebral.

Então negócio é ouvir Kaiser Chiefs e gritar: “adelante!”. O desânimo passará, a primavera passará, o próximo verão passará, outro inverno virá e novamente poderemos tomar nosso vinho tinto seco sem se preocupar com o calor. Como diz o Eclesiastes em seu capítulo 1, versículo 5: “O sol se levanta, o sol se põe, voltando depressa para o lugar de onde novamente se levantará”. Mas pra encerrar, em homenagem aos companheiros alérgicos, nunca esquecendo dos órgãos públicos que nos impedem de podar árvores sem uma rubrica à Kafka, deixo meu “Poeminha de Floração”:

Ah!, a primavera! / Uma estação feliz!
Na qual você espirra pólen / E passa assoando o nariz!

Ah!, a primavera! / Como me deixa inspirado!
Ao transpirar corticoides / E me sentir inchado!

Ah!, a primavera / Prelúdio de um quente verão!
Bom pra gente desmaiar / De tanto que baixa a pressão!

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

"O RETORNO DE SATURNO", O LIQUIDIFICADOR, O PNEU E O "LOUCO DO BADANHA" (OU "DA ORIGEM DAS SUPERSTIÇÕES").

Gostaria de ser supersticioso. Decepção: não sou. Não consigo entender a razão pela qual soprar o gargalo de uma garrafa vazia traz maus agouros, por exemplo. Mas certas coisas dão o que pensar. Se somar os acontecimentos que relatarei ao fato de que, com recém completos vinte e oito anos, acabei de entrar no que os astrólogos chamam de “O Retorno de Saturno”, algo certamente surgirá. O quê? Uma dedução totalmente racional ou uma profecia ao estilo “2012: esqueçam suas malas”? Não faço ideia. Por isso, vamos ao ocorrido.

Meados de fevereiro de 2012. Onze e pouco da noite. Encontro dois filmes legais pra assistir. Primeiro: “Reflexões de um Liquidificador”, dirigido por André Klotzel. Roteiro: um liquidificador, após conserto, adquire consciência e passa a questionar sobre a vida e a morte – além de auxiliar uma dona de casa com os “restos” de um assassinato. Segundo: “Rubber”, dirigido por Quentin Dupieux. Enredo: o protagonista é um pneu com poderes telecinéticos e capacidade de matar o que enxergar (?!) pela frente. Até aí, ok. Penso: “Legal!, revolta dos objetos!”.

Mas lá pela metade do segundo filme, ouço uma gritaria na avenida. Espio. Vejo um sujeito alto, gordo, careca, roupas esfarrapadas de fugitivo de manicômio do século XIX, juntando gravetos caídos de árvores magricelas enquanto berra: “Lenha! Lenha! Olha a lenha do Badanha!”. (Minha atenção muda pra TV: é uma moça que teve a cabeça explodida pelo poder do pneu.) De canto, observo o cara dos gravetos – que percebe meu olhar e para. Sinto-me vigiado. Fecho a porta da sacada e sento. Estou meio assombrado.

Rita Lee me acalma: “Ah! São coisas da vida!”. Marcia Tiburi me assalta: “os mendigos, moradores de rua e loucos representam o inconsciente das cidades”. Dou uma risada em colchete. Um gole d’água e o filme chega ao final: destroçado o pneu, seu “espírito” encarna em um triciclo e ruma para Hollywood. “Talvez a ausência de sentido explique quase tudo nessa vida”, falo sozinho ao espelho quando me preparo pra dormir.

“Certo. Mas e aí?!”, pergunta-me o “Leitor Desconhecido” que sempre me indaga quando escrevo qualquer frase. “Aí complica a batatinha!”, respondo sem mais, querendo dar uns sopapos no espectro mental. Mas como não me assusto fácil, traço uma hipótese. Seus fatores: a) “Moer é pensar, pensar é moer”, fala o liquidificador em dada cena; b) “A ausência de razão é o principal elemento de um estilo”, argumenta um policial baleado no prólogo do filme do pneu; c) “Lenha! Lenha! Olha a lenha do Badanha!”, esbraveja alguém na madrugada de Santo Ângelo.

Pois bem. Se “a ausência de razão é o principal elemento de um estilo” (b) e juntar a “lenha do Badanha” (c) consiste em uma tarefa totalmente atrelada à ausência de razão, o que faz do ato um acontecimento estilístico à Buñuel (leia-se: surreal), pensar acerca desse cenário é um exercício de moagem (a) (“moer é pensar, pensar é moer”): qualquer suco daí extraído, quando bebido, terá um sabor tão ou mais estranho que aquelas sensações misteriosas e sem nexo descritas nos rótulos das garrafas de vinho (tipo: “pitangas amendoadas com tonalidades de orvalho primaveril”).

Mas o que esse catatau afirma? Isso: quando o sentido de algo depende da sua ilogicidade, qualquer resquício lógico sabota sua possibilidade de significação. E fecho assim: eu, vinte e oito anos, barba quase feita, calça jeans antiga, camiseta de uma festa de 2009, olho pro teto calvo de claridade e procuro relacionar o barulho da minha respiração com o liquidificador, o pneu, o “Louco do Badanha” e “O Retorno de Saturno”. Daí brota uma conclusão: quando você busca ligações de “A” com “Z”, acreditando que existe um traço de lógica nesse esquema (ainda que o mundo todo teime que não), o que surge é um relato sem pé nem cabeça. De planchaço, dá pra perceber que essa é também a origem das superstições: nossa mania maluca de procurar pêlos na casca do ovo da realidade.

(P.S.: Percebem como tudo na vida nos traz uma lição? Bonito! Mas fico por aqui: hora de ler meu horóscopo – mesmo não sendo supersticioso, é gostoso brincar de místico.)

SINTOMAS DE "TCHÚ" E RAZÕES DE "TCHÁ".

Madrugada de terça pra quarta. Santo Ângelo. RS. Brasil. Universo conhecido. Via-Láctea. Sistema Solar. Planeta Terra. Meu quarto. Leio “Por um Direito Comum” de Mireille Delmas-Marty. Busco subsídios pro meu projeto de doutorado. Mente aguçada, aparvalhada em conceitos, rabisco anotações que não entendo – mas que decifro por uma compreensão misteriosa que me acossa quando me ponho a escrever. Um carro derrapa na rua. Na sequência, tremem os vidros da janela. Ouço uma música. “Eu quero tchú / eu quero tchá / eu quero tchú / tchú, tchú / tchú, tchá”. De início, não entendo aquilo. Entro em transe. Vogais me alucinam. Consoantes me confundem. Sussurro pra esquecer: “fake / fake / fake”. Mas o barulho de uma garrafa espatifando no asfalto me acorda dessa vibe xamanística. E penso: “que coisa é essa?!”.

Então lembro Mario de Andrade, Ezra Pound, James Joyce, Antonin Artaud e outros tantos autores que se utilizaram de sons absolutamente sem nexo para expressar sua estética. Procuro, em razão de uma absoluta vontade que trago de não ser de modo algum preconceituoso, encontrar o “eu lírico” do sujeito que compôs a canção. Largo o refrão no Google. Descubro que os compositores são João Lucas e Marcelo. E mais: inclusive o Neymar (aquele galizé do Santos) faz uma participação na música. Leio o restante da letra. Fala em “biritar”, em “balada”, em “dança sensual” e troços do gênero. A visão que me instiga traduz cowboys do interior de SP mesclada com funkeiros do Rio. Mas o que me intriga é o refrão. O que significa “tchú / tchú / tchú / tchá”?

Após largar de canto Delmas-Marty, ponho-me a traçar uma exegese apurada acerca da letra do “tchú / tchá”. Mas canso. Mas me irrito. Então vejo que Zygmunt Bauman me acena da estante com seu “Amor Líquido”. Reflito: “cara mais chato esse Bauman! tudo líquido! tudo cachaça! tudo cerveja!”. Nesse momento é que no Facebook, uma amiga me envia um link. Do YouTube. Abro a janelinha do Chrome. Ponho os fones. Vejo os artistas: “Valesca Popozuda e MC Catra”. (As mãos suam. Algum temor me encarna.) Nome da composição? “Mama”. Diz a descrição que se trata de um “pagode clássico”. Embora não tenha a menor ideia do que isso significa (recordo de SPC, Fundo de Quintal, Revelação e coisas tais), dou play. Nesse instante, minha análise sócio-cultural das produções artísticas contemporâneas de cunho popular ganha novo norte.

Razões? Vejo críticas e mais críticas direcionadas à Valesca e ao Catra. Vejo pessoas e mais pessoas dizendo que aquilo não é música. Mas falo comigo, batendo na mesa e tomando um largo gole de café: “que coisa é essa?!”. Raciocinem. Roberto Carlos canta (em “Cavalgada”) algo assim: “(...) Vou me agarrar nos seus cabelos / Pra não cair do seu galope / Vou atender aos seus apelos / Antes que o dia nos sufoque”. Todo mundo acha lindo. Romântico. Sparks. Mas falam mal da Valesca e do Catra pela canção “Mama” (cuja letra considero melhor não transcrever – parental advisory: explicit content). Qual o pecado?! O que tais seres fizeram, foi apenas explicitar o conteúdo subliminar de quase toda música que se diz “romântica”. Levando as coisas ao grau extremo (bem extremo!), talvez sejam, futuramente, mesmo tidos como Marcel Duchamp – aquele artista francês que tascou um mictório num museu e chamou de “La Fontaine” (isso em 1917).

No frigir dos ovos, somos todos farinha do mesmo saco, movidos pelo sexo e pelo estômago. Se algo existe entre um e outro, não sei (mas acho possível). Mesmo assim, decido: escreverei um ensaio chamado “Elogio do Funk” (mesmo que “Mama” seja um “pagode clássico”), no qual dissertarei sobre o fato das pessoas ouvirem música com os ossos e não com os ouvidos (razão pela qual existem tantos sons automotivos turbinados por aí). Problem? Não. O único problema é o purismo. Arte virgem não é arte. Quanto mais “depravada” (para os conservadores e para o “bom gosto”) a produção cultural de uma sociedade, mais saudável é essa sociedade. Mas aí é que me vêm à mente o seguinte: por que me senti tão “revoltado” (ui, ui, ui) quando ouvi o “tchú / tchá” seguido dos estilhaços de garrafa (ceva, presumo) na frente da minha casa? O motivo é óbvio e implica em uma decisão: para afastar sintomas de “tchú” e razões de “tchá”, de agora em diante apenas estudarei com algodões nos ouvidos.

"ADO-A-ADO / CADA UM NO SEU QUADRADO".

Tenho pavor de gente espaçosa. Sabe aquele cidadão que você vê uma vez a cada morte de Papa e chega como se fosse o cara mais íntimo que você conhece? Pois é. Falo desse tipo. Pior ainda é gente com fala mansa e jeitinho doce. Pode parecer paranoia, mas sempre tenho a impressão de que se trata de alguém pronto pra sentar uma faca nas minhas costelas. O problema é que a moda é ser assim, sociável. Se você apontar sintomas de pouca afeição pela humanidade, é provável que surja um diagnóstico psíquico nada afetuoso. Mais provável ainda, é que não seja selecionado em qualquer dinâmica de grupo que busque novos funcionários mediante a difícil tarefa de estourar balões à procura de papéis com instruções diversas. Afinal, o mercado quer líderes e líderes precisam estourar balões.

Mas o que significa ser sociável? Trabalhar em grupo? Aceitar opiniões alheias? Dar um Sorriso Colgate pra todo e qualquer banana? Não faço ideia. Mas pessoas muito sociáveis costumam me meter medo. Você nunca sabe o que há na cabeça delas. São como as Mulheres Fruta. Por fora, tudo bacana, tudo ok, tudo very good. Mas vá saber o que se passa na mente das criaturas. Ou será que não passa nada? Não sei, não sei. O que parece, é que nossa devoção por embalagens bonitinhas atingiu seu ápice nos últimos tempos. Sujeito tem que ser sarado, ter vida saudável, altas pretensões financeiras e ser vazio de chatonilices. Não vale barriga de jundiá, cerveja com amigos ou manias pra dormir. Tudo deve andar na crista da onda dos carinhas da Malhação. Do contrário, sua pontuação cai e você acaba na parte de fora daquele restrito círculo dos cidadãos bem sucedidos.

O fato é que o bom-mocismo contemporâneo anda cada vez mais irritante. Se você não se preocupa tanto com a causa dos cães de rua, você é um desalmado. Se você não acredita piamente na preservação do patrimônio histórico, você é um ignorante. Se você não faz das tripas coração pra rechear sua conta com mais e mais cifrões, você é um acomodado. Há uma urgência por certo movimento contínuo em uma única direção. Do que é composto esse destino? De promessas. Promessas de uma vida feliz e tranquila. Promessas de uma existência longa na qual você jamais terá que enfrentar a fila do SUS. Promessas de que, lendo certo manual e seguindo certas regras, invariavelmente você atingirá o sucesso. Promessas em cima de promessas fincadas em um ideal de vida cimentado por rostos amigáveis e carros do ano.

Talvez isso seja bom. Quem sabe, o que todos queiram. Duvido alguém que renegue coisas do tipo. Mas sustentar todo um futuro em torno de expectativas do gênero, sempre será frustrante. As quedas virão. Os desassossegos surgirão. E o que você fará? Engolirá a mais nova pílula da felicidade e seguirá com a cabeça ereta, como se todo seu corpo estivesse enrijecido pelo mais potente Viagra? Convenhamos: as coisas não são bem assim. Precisamos cair. Precisamos nos desesperar. Riso demais é desespero. Sociabilidade em excesso é carência ou falsidade. Não existe nenhum problema se você acorda xingando o dia ou a capa do jornal. Isso é humano, isso é natural. Quem não tem gorduras ou defeitos? Quem não tem preconceitos, vícios ou dentes um pouco amarelados? Ninguém, ora. Então pra quê negar tais pontos? Por qual razão viver na frustração de um objetivo que jamais será alcançado? Isso é bobo, muito bobo.

O problema é que gostamos de cultuar bobeiras. Vivemos a maior parte do tempo como quem faz cruzadinhas. Negamos o essencial e nos preocupamos com os enfeites. Parece que a cereja do bolo vale mais que o bolo em si. Ao invés de olharmos para o lado e nos darmos conta de que estamos todos no mesmo barco, viajando sem eira, beira ou propósitos por um Universo repleto de mistérios, seguimos nos preocupando com mesquinharias que nada nos acrescentarão além de dores de cabeça. Claro que você pode ralar na academia. Claro que você pode suar neurônios pra passar em um concurso. Além de você, ninguém é responsável pelos seus passos. Você está condenado à liberdade e à responsabilidade que surge dessa condenação sem remetente. Mas você deve se dar conta disso. Você deve sentir o absurdo da sua condição a todo momento para que efetivamente perceba o valor que existe em cada instante da sua vida. Se não for assim, bobeiras musicais, bobeiras sentimentais, profissionais ou místicas irão tomar conta da sua vida.

Isso tudo me lembra um parente de São Luiz que via e vejo raramente. Quando eu tinha meus quinze anos, ele vinha todo espaçoso, sorridente e cheio de dedos pra largar: “Mas esse guri dá um baita jogador de basquete, hein?!”. Ao que eu respondia: “De forma alguma: minha especialidade é jogar sinuca”. Daí ele ficava encabulado e me deixava em paz. Hoje em dia, as coisas não mudaram muito pro meu lado. Se alguém que mal conheço chega todo querido, fecho a cara e me imagino trancado no quarto, lendo James Joyce sem entender bulhufas. Com essas pretensões muito certinhas, funciono do mesmo jeito. Desconfio de tudo o que promete demais e todos que são perfeitos demais. Trago mil pulgas atrás da orelha com alegria em excesso, entusiasmo em excesso e escassez total de preguiça. Não é que não goste do ser humano. Pelo contrário, gosto de gente. Mas gosto de gente que é gente e não tem medo de ser gente. Com os demais, esses que se querem sem defeitos e preocupados com a fome na África, apenas convivo.

É como dizia o poeta: “Ado-a-ado / Cada um no seu quadrado”. E ponto final.