domingo, 16 de outubro de 2011

Jam nº 9 (ou "Para um começo").

Não sei o significado de você sonhar com minha morte. Talvez aquela mensagem que enviei pelo Facebook, aliada ao fato de você passar por um momento inquieto, tenha trazido essas imagens ao seu sono.
Imagino suas pálpebras em movimentos leves, seus cabelos caídos nos lábios e seu corpo, encolhido e virado para a parede, absorvendo as fotografias do seu inconsciente. Penso que o quarto estava escuro, que aquela geléia verde da lâmpada estava quieta e que na sua rua, mais que de costume, nenhum jornal era revirado pelo vento e cachorro algum buscava restos pelo lixo. Enquanto todo esse cenário, absolutamente isento de quaisquer destinações ou pinceladas ligadas a alguma racionalidade, desenhava-se ao seu redor, um filme do meu fim passava diante do castanho do seu olhar.
Você disse que minha morte não foi violenta. Disse que morri calmo, imerso em uma tranqüilidade quem sabe parente da calmaria detrás do estádio.
O que me perturbou no seu relato foi o sentimento de você ter notado meu espírito ensimesmado nas mesmas questões da vida quando na morte. Me fez pensar na primeira vez em que reparei você. Aquele seu sorriso por debaixo dos óculos de aro preto, o brilho da sua íris faiscando minha atenção e minhas palavras, grávidas de estruturas medrosas pelo menor caos, ressoando pela sala.
Não sei como as coisas chegaram até aqui. Você não me bajulou, não pontuou minha vaidade com gorduras desnecessárias e nem mesmo precisamos começar tudo ao redor da praça – como sempre havia ocorrido comigo até então. De alguma maneira que escapa ao meu senso, sua pele me ligou a alguma coisa que há muito tempo estava ausente da minha vida. Estrangeiro completo, soterrando ânsias com técnicas para buscar algum sossego que me escapa, eu era aquele que bebia largos goles de solidão a cada final de semana, a cada carne que percorria com mãos desesperadas por algo sincero que de modo algum conseguia encontrar.
Ano passado, depois que uma perda me fez duro, casca presa ao prazer que não percebe o menor sabor, construí ao meu redor uma câmara que me isolava de tudo o que poderia de alguma forma ferir. Não chegou a ser o muro do Waters, mas passou perto. Pensei que minha vida, daquele momento em diante, não passaria de uma ressaca de arrazoados e citações, afogada em verborragias conceituais das quais eu falava, falava e falava – ainda que soubesse da menor ciência havida em tudo que dizia. Turgueniev está certo: “Pretendes a felicidade? Aprende a sofrer”. Foi exatamente isso que me aconteceu.
Revolvi tanta falta, tanta ausência de luz, tantas cinzas e cigarros rebatidos contra o chão ou cinzeiros, tantos copos e areias de puro e pleno vazio, que alguma notícia boa, como diz aquela música do Nenhum de Nós, inevitavelmente teria de vir.
Mas não precisei pedir por favor.
Surgiu ao acaso.
Surgiu você, que nessa manhã nem quente nem fria, chumbo e com ares de chuva que não chega, traz aos meus dedos uma paz plena de saudade serena: não picante ao ponto de arder, não doce ao ponto de enjoar, mas medida e dosada pela tranqüilidade que eu buscava.
Claro que tenho medo. Nossos calendários biológicos (para não falar em idade) não batem. Tenho receio de sufocar sua liberdade com minha impertinência, impedindo que você viva coisas que deve e tem de viver. Tenho medo que alguma espécie de ciúmes, domcasmurrento por essência, aplaque essa sensação de agora e aquele calor que sinto quando abraço suas costas e beijo sua nuca.
Meu pavor se concentra na possibilidade óbvia de que o egoísmo que trago, o qual orbita somente os sentidos do meu umbigo, venha um dia a separar esse sentimento siamês que estamos construindo. Tenho noção da finitude de tudo, do despropósito de toda pretensão que queira achar simetrias no real. Mas você deve entender que o que faço desde aquela madrugada dos meus quinze anos é para propagar a beleza e o amor – palavras e sentidos que provavelmente desconheço e por isso tanto falo, tanto busco.
Por isso seu sonho está certo. Se existir algo como um espírito, se da minha carne morta se descolar uma matéria híbrida, feita de sal, letras e acordes, certamente essa matéria, evanescente e pulsante, nada condigna com lençóis brancos ou roteiros do Stephen King, irá perambular pelo mundo na expectativa de finalmente resolver algumas equações e preencher lacunas de respostas sempre vazias.
Buscarei, porém, vinho.
Buscarei, saiba disso, muito vinho, pois se o espírito realmente existe, se a vida não acaba liquefeita em alguma reação química que dissolva nossas entranhas e conserve apenas os ossos, ele é um alcoólatra inveterado.
“Por quê?”, você pergunta.
Ora!, a resposta é racional e óbvia: que sentido existe em permanecer distante da possibilidade de morrer?
É injusto a vida continuar após a morte.
Simplesmente morrermos é muito mais balanceado, concatenado com certo senso de equilíbrio entre liberdade e igualdade. Mais que isso é um atalho para o álcool – ou seja lá qual droga existir na transcendência.
(O além deve ser uma favela de viciados. O Céu, um motorista emaconhado que não destrói os postes dos santos por sorte e mais nada.)
“E Deus?” – é você novamente: emudeço na conjugação dessas quatro letras. Prefiro apenas não comentar. Não é algo que me cabe – e resolver qualquer pendenga que tenha quanto ao significado ou à personificação dessa combinação é uma pretensão distante, distante demais até mesmo para o suposto espírito dos seus sonhos.
Deve ter sido aí que sua inquietação, a preocupação com as provas da faculdade e com as peripécias da sua irmã, tocou na minha mensagem (longa como o documentário sobre o Santo Sudário que recém havia assistido) e acendeu o isqueiro do seu-sonho-minha-morte (e não fique aparvalhada com esse pequeno jogo de hífens: trata-se de uma evocação tola e literaticida mediante todo e qualquer bom gosto; é besteira, enfim).
Desvendei o mistério? Não, sei que não. Apenas borrei alguns bytes com essa Calibri tamanho 11 que extrai da branquidão da tela o bordado escama de peixe das minhas palavras. Somente quis dizer que meu gostar por você aumenta não na proporção das estatísticas ou das especulações desses balanços que as empresas divulgam nos jornais, mas na nuance das brisas e das madrugadas em que a chuva, nem forte nem leve, prossegue decidida a acariciar nossos ouvidos e as possibilidades que todo quarto suscita.
É por isso que gosto de você: por essa concatenação completamente ausente de logicidade que gosto de você. Gosto dos seus cabelos, dos seus olhos, da sua pele e até do formato do seu pé. Gosto do seu corpo, dos seus seios, do modo como você ri e das coisas que me conta e me fazem ter uma vontade contínua de apertar seu corpo contra o meu e querer sua presença se confundindo com a minha.
Minha morte no seu sonho, de certa maneira me conectou mais ainda a você – e me sinto cúmplice da surrealidade dos seus anseios quando procuro iluminar sua imaginação com minhas composições de signos.
Sei que elas não são boas. Sei da profundidade oceânica de um copo d’água que meus devaneios carregam. Mas nessa manhã de outubro, ouvindo uns passarinhos guerrearem ruídos com o barulho insuportável de um cano de descarga estourado (certamente de um Corcel que passa na rua), tento falar justamente do “não saber” no qual se equilibra tudo o que tenho sentido por você.
O que mais dizer? Acho que chega.
Ao menos meu espírito não está vagando por aí e está aqui, assentado ao papel virtual enquanto procura sua presença na lembrança e quer que os sonhos que nas próximas horas virão tragam você inteira (corpo, ventre e sorrisos) à presença do meu tato.
Quem diria que isso aconteceria? Ninguém, absolutamente ninguém, quanto mais tendo por causa palavras e sorrisos – as minhas palavras e os seus sorrisos, minha linda.

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