quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O NADA COMO CENTRO DO REAL: ENSAIO SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA EPISTEMOLOGIA PÓS-MODERNA.

Em 1930, Sigmund Freud publicou o ensaio O mal-estar do homem na civilização[i], fazendo uma digressão entre a vontade de conforto e a inexistência desse conforto na época em que vivia. A constatação de Freud é no sentido de que o homem do século XX, permeado pelas várias promessas provindas do cientificista século XIX, ansiava pelo paraíso que a modernidade prometia. Essa promessa, calcada na perspectiva de segurança, de uma vida social estável e organizada em torno da ordem, povoou o senso comum acompanhada pelo extremo progresso tecnocientífico visto desde a Revolução Industrial no século XVII. Mas ao passo que as aspirações do homem caminhavam para uma direção, a própria realidade caminhava para outra. O que se via, em contraponto às certezas nascidas da ciência que tinham o mundo empírico como começo e fim, era uma sociedade que cada vez mais se mostrava incerta, incontrolável e assustadora. Nascia aí a percepção de uma angústia que permearia todo século XX.

Alguns anos antes, em 1927, Martin Heidegger publicou Ser e tempo[ii] [iii], obra tabular para a filosofia do século XX. Buscando a superação do pensamento metafísico por meio da intersecção entre os juízos apofântico, correspondente ao plano da linguagem, e hermenêutico, correspondendo ao plano da experiência, Heidegger tencionou ultrapassar uma questão que já havia em parte sido debatida por Immanuel Kant, mas não com a radicalidade da proposta heideggeriana. Com Kant, especialmente em Crítica da razão pura[iv], teve-se pela primeira vez na história da filosofia, com exceção do pensamento pré-socrático do qual Heráclito talvez seja o maior representante, uma tentativa eficaz de definir a origem do conhecimento. Kant, em suma, dirá que todo o conhecimento parte da experiência, mas que, para se ter o conhecimento a partir da experiência, são necessários certos juízos que precedem essa experiência e possibilitam a existência do conhecimento. Tais juízos seriam o que Kant denomina sintéticos a priori, que, ao contrário dos sintéticos a posteriori, justamente os provindos da experiência, definiriam a própria. Mas ao dizer que o homem necessita de juízos anteriores à experiência para que então a compreensão dessa experiência se dê, Kant não consegue vencer o desalinho abissal entre idealismo e empirismo, considerando-se que sua postura, por situar a possibilidade do conhecimento em um plano que precederia a experiência, fatalmente resta configurada como idealista.

Já Heidegger, discípulo de Edmund Husserl, o qual tencionava uma fenomenologia transcendental, buscando um juízo desprovido de juízos que pudesse dar conta do objeto que procurava apreender, irá marcar o século XX com a superação do dualismo clássico da filosofia ocidental. Ao contrário de Husserl, que ao buscar a pureza na própria percepção do objeto redundava em uma postura idealista, uma vez que para conhecer o objeto sempre se parte de uma pré-compreensão desse mesmo objeto, Heidegger irá situar a percepção do mundo em dois planos: o plano apofântico e o plano hermenêutico. O plano apofântico e o plano hermenêutico, correspondendo um ao plano da referência e outro ao plano do referido, não ocorrem um após o outro, como se poderia pressupor em uma dialética proveniente da acepção hegeliana. Contrariamente, ocorrem no círculo hermenêutico, que consiste na própria experiência do homem enquanto ser-no-mundo.

Como o homem é um ser que para estar no mundo tem sempre de carregar uma compreensão do que está ao seu redor para então se estabelecer enquanto humano, sendo que esta compreensão se caracteriza como um juízo básico acerca dos objetos e dos sujeitos que compõem o mundo, desde já e sempre o homem necessita de um cuidado para estar no mundo. Desse cuidado, estabelecido mediante o contexto histórico, lingüístico e social que permeia o próprio dizer do homem, brotarão os pré-juízos que redundarão em juízos acerca da realidade. O que Heidegger pretende explicar, é que quando se olha e se fala de um objeto, não se está apenas dizendo o que é ou o que não é esse objeto. Diferentemente, acopla-se ao objeto a carga vivencial do sujeito que diz o objeto. Quando se fala do objeto, ao contrário de reproduzi-lo no plano lingüístico, como se vê na dual tentativa platônica, há a produção de um signo que será por si mesmo uma coisa diversa daquele objeto que o possibilitou. Ao dizer as coisas, jamais há uma referência necessária às coisas, mas referências que habitam um movimento que se dá no plano lingüístico.

Heidegger baseou a primeira fase do seu pensamento na busca da superação da perspectiva metafísica a partir da intersecção do plano apofântico (palavra/referência) com o plano hermenêutico (objeto/referido), sendo que no entremeio dessa tênue linha se encontra o ser humano, o dasein, o ser-aí heideggeriano. Se o homem é enquanto tempo, tendo como característica fundamental a finitude, é ser-para-a-morte, só podendo ser em algum lugar enquanto está nesse lugar, de modo que só há o ser-aí no horizonte temporal da finitude. O que se pode retirar por ora do pensamento heideggeriano, é a extrema vontade de fazer o homem voltar para o lugar no qual sempre foi e esteve. Heidegger, em A Caminho da Linguagem, comentará, inclusive, que “queremos ao menos uma vez chegar ao lugar em que já estamos”[v]. Se Heidegger faz essa afirmação, é porque sabe que o ser humano somente pode ser enquanto linguagem, fator que será explorado radicalmente, conforme comenta Lenio Luiz Streck, apenas por Hans-Georg Gadamer, que, com a célebre constatação de que “ser que pode ser conhecido é linguagem”[vi], dará um especial tratamento a certos pontos do pensamento heideggeriano.

Assim, se por um lado Freud percebe que o homem do século XX está imerso em um mal-estar que redunda do excesso de promessas em contraponto à escassez de realizações da modernidade, Heidegger tentará situar esse mesmo homem no campo da finitude. Freud, em Interpretação dos Sonhos[vii], já irá tanger o quanto a linguagem, o quanto os signos estão presentes na própria concepção primitiva que a humanidade faz de si mesma. Heidegger, entretanto, traçando um pensamento sobre o pensamento que caracteriza toda sua teoria, fará com que a linguagem seja a própria existência possível do homem, sendo que este terá de suportar sua existência sem jamais poder chegar ao objeto: sem jamais poder chegar ao que não se pode dizer e propicia todo o dito.

Antônimas a tais concepções, contudo, seguem todas as promessas modernas. Provindas de um século XIX ainda abalroado com os ideais iluministas, a modernidade irá legar a si um potencial que não é capaz de cumprir, o que, devido aos ápices de superação e obsolescência de suas próprias promessas, irá causar justamente o mal-estar que configura a condição do homem do século XX. Mas quem é esse homem do século XX? Quem é esse homem que interessou Freud, que interessou Heidegger, que, num contexto coletivo, produziu obras de extremo valor ao passo que espalhou aos quatro ventos um terror racionalista cujo exemplo maior pode ser obtido nos campos de concentração da Alemanha nazista? A partir dessas perguntas alguns pontos referenciais podem ser traçados.

Se o homem do século XIX, calcado pela repetição interminável da divergência entre o idealismo e o empirismo, não mais está para a concepção do homem do século XX, o qual, para além do dual, é uno, estando situado em sua finitude, em seu mundo, em sua realidade, para só então produzir essa mesma realidade a partir do que pode primordialmente conhecer dela, não mais se está pisando em um terreno estritamente moderno. A razão, mais por via de Freud que de Heidegger, foi posicionada como uma pequena ilha no mar revolto do inconsciente. O que acontece na passagem da modernidade é o desdobramento de promessas metafísicas que tencionavam abarcar o todo sem dar conta da própria falta que o todo pressupõe. Ora, se o homem morre, se o homem é caracterizado pela sua finitude, como buscar o todo, e portanto o infinito, se a própria condição finita não dá margem a uma visão do que se propõe com esta busca? A resposta pode parecer óbvia ao primeiro olhar. Mas para que esta passagem se dê no campo das ciências e mesmo no campo do senso comum, a revolução que deve se operar é enorme. O óbvio, na maior parte das vezes, é o que mais se demora a perceber – e talvez justamente por pressupor racional o que está para além da própria racionalidade.

O que se operou com a filosofia que tentou superar a perspectiva metafísica, que tentou captar o espírito da sua época, foi uma revolução epistemológica que influencia tudo o que se faz em ciência até os dias atuais. De uma concepção do homem centrada ou na idéia ou na realidade, brotou uma concepção do homem centrada em si mesma, centrada naquilo que é enquanto ser-no-mundo, ungido de impulsos e incoerências dos quais a psicanálise procurará dar conta com a sua tentativa de apreensão do inconsciente por meio da teoria freudiana. O que se tenciona dizer é que a estrutura das revoluções inerentes às concepções da feitura da ciência com o correr dos séculos, diz muito da própria estruturação da raça humana na história. Ao atrelar a produção do saber à estruturação do homem tanto numa perspectiva coletiva quanto numa perspectiva individual, pode-se perceber que este, em maior ou menor grau, sempre foi em função do que o saber da sua época dizia. Para perceber isso, basta atinar, por exemplo, ao fato da obra-prima de Montesquieu, Do Espírito das Leis[viii], referir claramente uma concepção idealista da realidade no próprio título, sendo que seu exato contraponto pode ser encontrado na doutrina de Auguste Comte, que deu foz a uma concepção empirista da realidade e a todo positivismo que permeou o século XIX.

Desse modo, pode-se ver também que esse mesmo positivismo ocorreu por conta da fúria cientificista que serviu de entrada ao século XX, no qual a modernidade, instaurada na consciência coletiva a partir do imaginário criado em torno dos ideais iluministas que tencionavam posicionar o ser humano como centro do universo a partir de sua racionalidade, viu várias de suas conquistas relegadas à obsolescência ao passo que outras foram maximizadas em todos os seus termos, o que redundou, segundo Zygmunt Baumam, até mesmo nas atrocidades do Holocausto, correspondendo este ao auge da modernidade devido à ausência de freios humanistas aos primados racionalistas[ix]. Contudo, em meados da segunda metade do século passado, várias posições teóricas começaram a se construir em torno dos tempos vividos. Percebeu-se que a época vivenciada não mais poderia ser rotulada como moderna, uma vez que várias das suas facetas apontavam para uma era posterior que passou a ser chamada de “pós-moderna”. Mas por mais que se trate de um tempo paradigmático no qual vários dos fatores que o compõem tem a sua respectiva singularidade ainda desconhecida, trata-se também de um tempo que não sabe dar nome a si, que não sabe se é em função do passado ou do presente, sendo que, para calçar seu próprio rótulo de “pós-moderno”, tem de se referir ao rótulo moderno através do prefixo “pós”.

Vê-se assim que o homem do século XX é um homem que está de passagem, para o qual a própria claridade, a própria iluminação provinda dos ideais referentes à Revolução Francesa, por exemplo, é incapaz de dar luz para a sua realidade. Mas como refere Emmanuel Carneiro Leão, “para o homem definido na mortalidade, uma clareza sem sombras não esclarece, ofusca”[x]. Se o século XX é um século vespertino, considerando-se que a claridade do dia pode cegar os incautos, há que se dizer também que a própria técnica, característica fundamental da modernidade em sua natureza sintomática, apesar de necessária à realização de determinadas aspirações humanas, esvazia de originalidade o próprio ser humano, uma vez que parte de parâmetros pré-estabelecidos para dar conta de uma realidade mutante e maleável, tida à mercê do tempo que a submete em todas as suas dobras. É nesse sentido que Heidegger trabalhará a noção de tecnocapitalismo, que desaguará, consoante a segunda parte da sua obra, na desertificação da própria humanidade, fazendo-se aí uma referência a Friedrich Nietzsche[xi]. Ao contrário da destruição, que elimina somente o que cresceu e foi construído, a desertificação põe amarras ao crescimento futuro e veda toda construção presente.

Mas se o tempo presente é irreconhecível, tendo de buscar sua própria identidade atual em uma identidade passada, releva-se que para além da desertificação verificada por Heidegger resultante do exacerbado apego à técnica, vive-se um tempo em que a ciência está construída a partir de outros pressupostos que não aqueles inerentes à modernidade – mesmo que de maneira alguma se possa menosprezar suas contribuições. Para perceber isso, importante ressaltar o surgimento da obra de Freud no despontar do século XX, na qual a produção teórica não se dá a partir de uma constatação ou uma verificação empírica, como se queria com a matriz que remonta a Galileu Galilei, mas a partir de uma determinada arquitetura conceitual que possibilita a própria apreensão do objeto pretendido, que, no caso de Freud, é o inconsciente. Pode-se dizer que, apesar de se encontrar historicamente situada na primeira parte do século passado, a obra de Freud já tem características pós-modernas, podendo perfeitamente ser considerada como o primeiro sintoma de um tempo que estava por vir.

Se diante de determinado ponto de vista a atualidade é inominável, daí provindo a configuração “pós-moderna”, de outro ponto de vista esta parece ser a nomenclatura mais adequada a esta mesma contemporaneidade. Mas o que pode se depreender de uma época como a atual é justamente o fato de que a ciência não mais se estrutura em torno de um paradigma estritamente racional, mas em torno de um paradigma que leva em conta até mesmo o sujeito do qual provém o discurso para assim dar cabo da própria autoridade daquele que dá o discurso da ciência. Contrariamente ao que estava sedimentado no seio da modernidade, na qual se deu o desdobramento da perspectiva metafísica para a qual nada surge do nada, na pós-modernidade, principalmente por conta da contribuição de Freud, começa a se perceber que a própria irrupção do discurso se dá não em razão de uma presença, mas em razão de uma falta. Esse reconhecimento promove uma revolução no modo de se pensar e de se fazer ciência que ainda não foi notada em sua totalidade, visto que vivendo tempos pós-modernos, as próprias promessas da modernidade se encontram arraigadas nas realizações presentes.

Considerando-se que na modernidade a tradição metafísica dava as cartas, na pós-modernidade a superação da tradição metafísica por via da filosofia que despontou no período Entre Guerras, de um lado, e a voz remanescente da contracultura francesa que perpassou os anos de 1960, de outro, foi determinante na própria concepção da feitura da ciência a partir de então. Nesse rumo é que Jacques Lacan irá falar que o nada, ao contrário do descaso perpetrado pela metafísica ocidental, não se caracteriza apenas como uma ausência, mas como uma presença, como uma falta que propicia a própria constituição do sujeito[xii]. É também nesse caminho que aponta Heidegger ao afirmar no célebre discurso da sua aula inaugural na Universidade de Freiburg, O que é a metafísica?, que a ciência, ao não admitir o nada, não admite o afeto fundamental do ser humano: a angústia[xiii]. Para Heidegger, a angústia se caracteriza como o afeto fundamental do ser humano por ser provocada diante do reconhecimento e da aproximação do homem com o nada. O relacionamento do homem com o nada se dá por meio de um permanente jogo de atração/repulsão, sendo que é este vai-e-vem que possibilita a própria existência do homem, uma vez que em torno do nada este se constitui enquanto linguagem.

Mas é de se dizer que a conferência proferida por Heidegger na Academia de Belas-Artes da Baviera no dia 6 de junho de 1950, intitulada A coisa, traz um maior desenvolvimento dessa concepção[xiv]. Nesta lição, Heidegger dirá que a estruturação do ser humano no terreno da linguagem se dá a partir do nada na mesma medida em que um vaso, para existir, tem de se estruturar em torno de um vazio. Com esta analogia, as coisas, para serem apreendidas pelo ser humano, pelo dasein heideggeriano, por meio da experiência e da linguagem, teriam de se dar como referências em torno de um vazio que propiciaria a sua existência. Da aproximação em relação à existência e reconhecimento desse vazio, desse nada, dessa presente ausência que propicia a estruturação das coisas enquanto linguagem, surge o afeto fundamental da angústia, este caracterizado pelo reconhecimento desse vácuo no centro do real. Contrariamente a uma tradição que surge com Aristóteles e avança até o discurso de René Descartes, o vaso não se cria a partir da matéria, mas em torno de um vazio. É aqui que se pode aproximar o que Lacan chama de real e que Heidegger irá chamar de nada. Se para Heidegger o nada é o que propicia o dito, para Lacan o real é o que é irredutível ao significante. Entre o real e o significante está o real irredutível ao significante, o real que padece de significante, o real que anda, o real do sintoma – ou seja: o homem. Esse real, que por sua vez será sempre representado por um vazio precisamente por não poder ser representado por uma coisa, é que irá estruturar o sujeito em torno da falta que lhe é própria.

O que entra em cena, no sentido exposto, é que a ciência, ao pensar que nada possa surgir do nada, ou que, mais exatamente, o nada não possa ter efeitos, continua adstrita a um posicionamento que remonta à postura metafísica, visto que não há como negar a presença da ausência do nada uma vez que seus efeitos são notados, por exemplo, pela angústia e pelo sintoma que constitui a existência do homem restrita ao plano lingüístico diante da impossibilidade de apreensão do objeto. Ao contrário do que dispõe a tradição metafísica, toda criação é sempre uma criação do nada, a partir do nada e em torno do nada. Saber o nada é o afeto fundamental: saber o nada é angústia. Caracterizando-se como uma falta postulada como fundamental para a estruturação do sujeito, a angústia é o que possibilita o próprio engendrar do mundo enquanto significante, enquanto novidade, enquanto inesperado da referência correlata à impossibilidade de apreensão do referido. Nascida do reconhecimento do nada, da falta mediante a total impossibilidade humana frisada pelo fator da finitude quanto ao conhecimento pleno da realidade, a angústia dá margem a todas as possibilidades de desdobramento que o ser-no-mundo possibilita. A estrutura original do ser humano, segundo Géromê Taillandier, “não passa de uma espécie de odre, de bolha em expansão, que não tem outro mérito senão o de se identificar com o contorno que encerra o vazio central”[xv].

A poesia, a filosofia, o pensamento e a própria realidade como se mostra ao homem, isto é, no plano da linguagem, são construções em torno desse vazio que possibilita a existência das coisas dentro das possibilidades que o homem tem de percebê-las dada a sua fundamental condição finita. Mesmo que o nada não seja um ente ele tem de se fazer ente, tem de se fazer presença ausente, para só então se admitir ao homem enquanto possibilidade da própria constituição da realidade. Sendo inominável, já que nunca se sabe exatamente o que é, possibilita todos os nomes, possibilita todas as coisas por meio do seu reconhecimento através da disposição fundamental da angústia. Ser-aí, dessa forma, quer dizer estar suspenso no nada. Desenvolver-se na suspensão nadificante que possibilita a questão fundamental e assim o mundificar do mundo, o nascer dos signos brotados da percepção do nada, significa andar em direção a liberdade, pois o ser se manifesta enquanto finitude no ente que alcança a transcendência quando no abraço do nada. Se Lacan afirma, conforme comenta Jöel Dor, que “a palavra é a morte da coisa”[xvi], o que resta é transitar na impossibilidade de dizer o dito como condição de possibilidade do próprio fazer da ciência, estruturando-se esta com o reconhecimento do nada a partir do afeto fundamental da angústia para então se dar a irrupção da verdade.

Mas se a verdade do referido somente se abre ao homem através da verdade da referência, caberia dizer que a própria instância da verdade resta prejudicada. Como o homem constitui a verdade por meio do reconhecimento do nada que se dá na disposição fundamental da angústia, não há que se dizer que essa verdade, pelo fato de partir de uma relação do sujeito que diz com a própria realidade que se diz a partir daquilo que se diz, configura-se como única, configura-se como verdadeira em si. Conseqüentemente, se não há uma única verdade, um único dizer da verdade, como poderia um discurso solado tanto no empirismo quanto no idealismo pretender a verdade se suas prerrogativas de racionalização preenchem o espaço da criação com a vedação da possibilidade de irrupção do verdadeiro a partir da negação do nada? A negativa é evidente: a desertificação é conseqüência. Se de um lado Lacan diz que o sujeito se constitui a partir de uma falta, de outro Heidegger diz que esta falta, apesar de não poder ser apreendida, pode ser reconhecida a partir do sentimento de angústia que se constitui como o afeto fundamental do ser humano. Como mediante o paradigma inerente à ciência moderna há um pensamento que partindo da lógica procura abarcar o todo, negando que nada poderia surgir do nada, defronte um novo paradigma surgido no seio da indefinição pós-moderna surge uma ciência que, ao invés de brotar de conceitos pré-estabelecidos, como queria a ofuscante cegueira moderna, brota da própria falta: floresce do próprio nada.

As repercussões que tal inversão pode ter na produção científica são inumeráveis. Se no período inerente à pré-modernidade o sujeito se estruturava em torno do reconhecimento dos mitos que propiciavam sua identidade, e se no período inerente à modernidade foram os fatores cientificistas que denotaram as definições do homem, na pós-modernidade, pelo contrário, há um sujeito estruturado em torno da falta, em torno do nada, considerando-se que é apenas esta falta e este nada que irão propiciar a existência desse sujeito dada a sua inevitável perspectiva finita. A própria arte pós-moderna, como ilustra Michael Archer, com sua inquietante indefinição e seu aparato conceitual febril, diante do qual não se sabe onde começa a idéia e termina a obra, uma vez que idéia e obra passaram a ser uma coisa só que dispõe da intencionalidade de se construir um conceito visual ou mesmo sensitivo que exale essa indefinição, dirá dessa angústia, dirá da existência desse nada não apenas enquanto ausência, mas enquanto presença que possibilita a criação[xvii]. O espanto que talvez possa advir de algumas obras de arte características da pós-modernidade, isso por conta da angústia, da percepção da presença ausente do nada que resta entranhada em seus dizeres de obra, pode denotar a abertura de uma possibilidade ao homem, uma vez que, no comentário de Leão, somente com o “espanto chega a provocação da temporalidade na forma de uma denúncia e de um desafio: denuncia que o espírito do presente não é a presença, é a ausência do espírito e nos desafia a recuperar na própria ausência o vigor de transformação do espírito”[xviii].

Mediante o reconhecimento da falta, da presença da ausência em contraponto à promessa de apreensão do todo por meio da ciência que caracterizou a perspectiva moderna, restará estruturada toda universalidade inerente à ciência pós-moderna, na qual o discurso se dará em função do reconhecimento da angústia proveniente do movimento de atração/repulsão com o nada. Diferentemente da negação do nada perpetrada pela modernidade, a pós-modernidade, ao dizer por meio de Heidegger e Lacan que é justamente a presença desse nada que propicia a existência da ciência, reverterá os pólos do qual parte a ciência, fazendo com que esta dispare da existência em direção ao conhecimento e não o contrário. Se com o positivismo do século XIX se percebe um reflexo do cientificismo no campo inerente às ciências sociais, com a recorrente proliferação de extremismos sociais que redundam em atos de irracionalismo bretoniano nos tempos correntes se pode notar sintomas do reconhecimento da falta, do reconhecimento da angústia como fator determinante na estruturação do sujeito e portanto da ciência que esse sujeito pós-moderno produz. Como há reconhecimento da angústia, percebe-se um sintoma do nada indicando a sua entificação e não a sua simples ausência na história humana. Além do mais, o próprio homem pode ser configurado como um sintoma do nada, já que em torno deste se estrutura enquanto sujeito.

O que ocorre é que a finitude humana, atravessada pela linguagem, fala infinitamente para ser, sendo que dessa impossibilidade de ser sem estar na linguagem se pode afirmar que o humano fala pela falta, pelo desejo de algo que somente capta enquanto movimento que o perpassa e que tem de habitar para ser. Mas quando o homem fala, junto da singularidade do estilo de sua fala também fala a própria linguagem, o que denota o fato de que a universalidade lingüística fala através da singularidade humana. O que se depreende disso é que quando o homem fala, não é somente o homem que fala, mas também o próprio ser que o possibilita ser enquanto humano submetido à condição finita que o define: a luz dos faróis nasce do oco das lâmpadas. Do reconhecimento desse tartamudear de ruídos e palavrórios que tentam infinitamente preencher a falta que os possibilita é que irá nascer a pós-modernidade entrecortada pelos reflexos da modernidade, traçada enquanto tempo de passagem, de indefinição, produzindo um saber científico peculiar que diz muito do que ela mesma é. Mas ainda que o paradigma pós-moderno aponte uma produção científica que está calcada na falta, ao passo que o paradigma moderno diz de uma produção científica que está centrada na negação dessa falta, pois se crê completo mediante os ideais iluministas que o subsumem, a época atual, por trazer consigo a idéia e o termo da própria modernidade, ainda produz uma ciência que se desdobra na metafísica. Vê-se ainda a modernidade distribuindo as supostas vitórias de muitos setores da comunidade científica, adentrando com seu totalitarismo racional a inquietação de uma época de impasses.

O reflexo mais exato dessa tendência que vez ou outra crispa as dobras da história, pode ser encontrado mesmo no plano político com a proliferação de movimentos totalitários em vários países, sendo que estes se propagam justamente por conta do clima de inquietação que atravessa a humanidade. Essa inquietação, se não conhecida e pensada, sendo traduzida como angústia e como possibilidade de ser por meio de uma perspectiva que a possibilite ser dentro do seu próprio tempo, pode redundar em conseqüências drásticas e inimagináveis. Se Baumam afirma que o Holocausto proveniente da atitude do partido nacional socialista na Alemanha nazista consiste no auge de determinadas promessas da modernidade, uma vez que a lógica foi levada ao seu extremo nos campos de concentração, o que se pode esperar de um tempo que, por não compreender a si mesmo, prefere, em dados momentos, traçar a sua história em torno de uma totalizadora e falaciosa crença diante de um ideal que ao negar a falta característica do movimento democrático nega o próprio nada? O exato oposto do diálogo é a guerra.

Portanto, a discussão acerca da produção da ciência a partir de um diálogo entre filosofia e psicanálise, utilizando para tanto os discursos provenientes de Heidegger e Lacan, incidindo esta no contraponto existente entre o paradigma moderno e o paradigma pós-moderno, isto a partir dos fatores teóricos referentes à ciência, à angústia e ao nada, mostra-se de inelutável premência para o tempo atual. Se a estruturação das revoluções científicas no correr da história diz muito do homem que vive essa mesma história, a compreensão do que ocorre com a produção de discursos científicos a partir de pólos completamente adversos pode dizer muito das prospecções futuras que podem ser traçadas a partir do presente. Compreender a contemporaneidade a partir da sua inquietação, da angústia que lhe é própria e que arvora o discurso inerente ao contraponto entre o paradigma moderno e o paradigma pós-moderno, isto a partir de dois saberes que se interpenetram em seu dizer, como ocorre com a filosofia e com a psicanálise, é fundamental tanto para a produção quanto para a discussão do que é ciência atualmente. O discurso científico existe em determinado espaço e tempo que o subsume e que não pode ser esquecido quando da compreensão desse mesmo discurso, uma vez que da intersubjetividade cambiante entre os dados presentes em um determinado campo cultural provém o próprio estilo de vida contemporâneo.

O que acontece é que o sujeito sempre fala de algum lugar e de algum tempo, mas quando deslocado do lugar e do tempo de onde fala a sua fala, esta será inevitavelmente fantasiosa. Se a atualidade é permeada por um senso constante de incerteza, de penumbra na qual os objetos perdem a distinção e as próprias distâncias não podem ser nitidamente divisadas, uma vez que em certo canto do horizonte a escuridão ainda se arrasta, causando esse mal-estar das coisas que não se definem e que por vezes assustam, é justamente por conta disso que uma compreensão apurada desse contexto é fundamental. Ainda que discussões estritamente epistemológicas possam soar reducionistas e distantes de um tempo que enfrenta desafios cada vez maiores, a compreensão dos seus impasses e perspectivas se encontra diretamente vinculada aos dilemas vivenciados na atualidade. Se o nada é o centro do real, a possibilidade de uma epistemologia pós-moderna se dá diante desse reconhecimento, considerando-se que da aceitação da presença da falta enquanto estruturante do sujeito também pode surgir um senso ético-global mínimo que considere a existência humana como única condicionante para a concessão de direitos em escala mundial – também se admitindo que é o reconhecimento da presença do nada que dá margem a qualquer ordem democrática, vez que não se pode pensar em democracia se há a pretensão de se atingir uma totalidade. Nota-se dessa maneira que a produção científica de determinada época, pensada por meio dos seus pressupostos básicos e suas condições de possibilidade, denota a abertura a um diálogo inter-poli-transdiciplinar que em muito transcende a esfera epistemológica, abrangendo todas as dimensões da existência humana.


[i] FREUD, Sigmund. O mal-estar do homem na civilização. Trad. de ?. Disponível em http://www.opopssa.info/Livros/freud_o_mal_estar_na_civilizacao.pdf. Acessado em 25.08.2011.

[ii] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo – Parte I. Trad. de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

[iii] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo – Parte II. Trad. de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 11ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

[iv] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003.

[v] HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003. p.8.

[vi] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p.203.

[vii] FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos – Primeira parte. Trad. de ?. Disponível em http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000023.pdf. Acessado em 25.08.2011.

[viii] MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2005.

[ix] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

[x] LEÃO, Emmanuel Carneiro. Existência e poesia. In: RILKE, Rainer Maria. Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno. Intro. e trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005. pp.17-18.

[xi] NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2003.

[xii] LACAN, Jacques. Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998

[xiii] HEIDEGGER, Martin. O que é metafísica? Intro., trad. e notas de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[xiv] HEIDEGGER, Martin. A coisa. In: Ensaios e conferências. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006. pp.143-164.

[xv] TAILLANDIER, Gérôme. Introdução à obra de Lacan. In: Introdução às obras de Freud, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan sob a direção de J.D. Nasio. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. pp.263-264.

[xvi] DOR, Jöel. Introdução à leitura de Lacan – o inconsciente estruturado como linguagem. Trad. de Carlos Eduardo Reis. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. p.91.

[xvii] ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. Trad. de Alexandre Krug e Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

[xviii] LEÃO, Emmanuel Carneiro. Existência e poesia. In: RILKE, Rainer Maria. Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno. Intro. e trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005. pp.13-14.

2 comentários:

  1. Muito bom! O seu "nada" é cosmológico, a "vontade de poder" de Nietzsche também. Porém, talvez seja melhor trocar o "do nada" por "de nada". Na verdade, talvez falta um pouquinho de Rorty.

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  2. Perfeito! Um dos melhores texto que eu já li.

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