terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O CÃO DE DOGVILLE.

Informação não substitui cultura. Cultura não substitui conhecimento. Conhecimento não substitui organização. Por quê? Simples: ramos não substituem buquês. Tudo é questão de olfato. Por conta disso, cada qual tem sua versão do mundo. Provar minha tese é fácil: leia dez rótulos de vinho. Quem concorda com as supostas sensações lá descritas? A ordem do mundo é o caos. Importa saber se estamos construindo uma nova Babel a partir de um planeta ou de uma nave espacial. Ou será que o planeta é uma nave espacial? E melhor: até que ponto uma nave espacial não pode se tornar um planeta?

Possibilidades e potencialidades: liberdade e disposição – talvez sejam as únicas virtudes que não se percam no interesse. Mas qual possível liberdade e qual potencial disposição podemos ter em uma realidade castrada de imaginação e preenchida com “utilidades”? O monopólio do real leva invariavelmente à arrogância. Não importa uma estrutura libertária, mas sim uma liberdade de estrutura: isso é tudo o que não temos quando em resposta a qualquer busca que fizermos, o Google nos traz anúncios publicitários que, em tese, proporcionam a gratuidade da nossa busca. Mas não existe nada gratuito. Alguém sempre paga o pato. Se a publicidade implica na possibilidade de venda e todos somos de algum modo vendedores e de todo modo consumidores, o custo dessa gratuidade de uma ou de outra forma reverterá para nós.

Como nos contentamos com ramos, a passividade é o único passo. Buquês estão fora de cogitação quando o aroma do papel dá espaço ao hermetismo dos bytes. Tudo é questão de abstract, indexador, hiperlink. Resumos de resumos de resumos. A profundidade não é mais profunda desde Deep Throat. O único blog verdadeiro desapareceu com a Grécia Antiga. Isso daqui é um eco. Cá estamos, impossibilitados de parar pela hipotermia que seria consequência do gelo fino no qual patinamos. A velocidade é o contraponto do humanismo. A Era da Informação não busca entendimento, mas comunicação. A vulgata do english tem uma só tradução: this is the end. Falta-nos nostalgia porque nos falta imaginar. Falta-nos utopia porque nos falta um futuro distante dos alucinógenos.

Temos muito que construir desde que possamos pensar em desconstrução. Não uma desconstrução plena de tijolos de barro, mas uma desconstrução na qual vejamos que todo palpável é música, fugidio e belo em sua escassez de possíveis compreensões fora do conhecimento das partituras. Enquanto nada disso chegar, permaneceremos isolados não apenas dos outros, mas principalmente de nós mesmos. Inoculando a perversão e o estresse em nossos dias, imersos no desgosto por já termos quebrado todas as regras possíveis, fazendo de Anna O. uma mera piada de Breuer personificada pelo reverso tenro de Amy Winehouse e Lady Gaga, continuaremos a pensar que falar sem parar é o mesmo que simplesmente falar.

Queremos o excesso porque nos falta a percepção do escasso. Queremos o escândalo porque falhamos ao perceber o trivial. Empacotados no virtual, mais vale o MSN à uma mesa de bar. Românticos são ultrapassados quando a música destrói a possibilidade de qualquer conversa – por isso as baladas abalam a intimidade longe da objetificação, a qual é apenas a convivência de solidões em motéis mais do que baratos. Essa felicidade pobre é o resultado das nossas escolhas perpassadas por possíveis liberdades condicionadas pelo ganho e potenciais disposições globalizadas pelo consumo.

Quando Gaia virou Terra, nossa força vital se perdeu. Zumbis auto-proclamados, chicoteados no incessante sadomasô dos outdoors dos gozos que recalcamos e desaguamos na fatura dos cartões, interessa-nos uma calota neon – nada mais. Mas o crédito um dia acaba. Daí talvez compreendamos a cultura da informação, o conhecimento da cultura e a organização do conhecimento. Quem sabe aí percebamos que um buquê não é o mesmo que um ramo e que um ramo pode ser muito mais que um buquê.

Se a ordem do mundo é o caos, apenas do caos é que brotará o novo, reconhecido pela solidão indevassável, pela insignificância cósmica e pela consciência total de que, apesar de vivermos como sonhamos – ou seja: sós, como disse Conrad – tudo é porvir quando “planeta” for sinônimo de “espaçonave”: Babel de diferentes mas iguais, pois mortais. O vinho então terá outro sabor nada afeito à rótulos, desapegado de um Morfeu de Hades mas irmão de um Apolo de Dioniso. Só a tragédia liberta o riso na proporção do inevitável.

Moral cinéfila: 2010 não foi o ano em que fizemos o contato. Mas ainda podemos escolher entre a pílula azul e a vermelha. Só assim veremos o cão de Dogville. Ou não.

4 comentários:

  1. Eduardo,
    Não concordo com vc, qdo escreve:"Falta-nos nostalgia porque nos falta imaginar. Falta-nos utopia porque nos falta um futuro distante dos alucinógenos."
    O ser humano sensato possui o livre- arbítrio!
    Abs,
    Eunísia

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  2. E se o caos morar bem no centro, na praça central daquilo que chamam alegria? Engessa a vida essa fome de felicidade, de vida estável, de carro na porta, metas estruturadas e futuro traçado. O caos é a vida correndo na direação incerta.E isso não é tragédia, é potência.

    Bjs

    Saudades

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  3. Eunísia: A nostalgia é o sonho do passado. A utopia é o sonho do futuro. Falta-nos imaginar um passado. Portanto nos falta criar um futuro. Um humanismo redivivo, provido de bases plenas de finitude, talvez seja o caminho. Enquanto ele não existir, nossa liberdade será transcendente e não transcendental. Logo, será precária.

    Glória: O caos é o reconhecimento da potência da tragédia.

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