quarta-feira, 6 de outubro de 2010

OROBORO DE COBRA CORAL.

Não me impressionou o resultado das eleições. Fiquei entediado. Nada de novo no front. Brasil é Brasil. Lógica autofágica. Cobra que devora o rabo. Ali se encontra nossa história. Mito que tem um pai como centro. Pai que sabe quem são seus filhos. Mas esconde grana no colchão. Libera uns trocados pros rebentos não berrarem. O direito se confunde com caridade.

Poucos percebem o atoleiro.

Talvez por isso sejamos o país da gambiarra. Ou o país mais imoral do mundo. Nosso governo reflete relações familiares. Temos de fazer parte da irmandade pra ter direito a ter direitos. Isso só aumentou nos últimos anos. O Bolsa Família, por exemplo, não quer dar condições pras pessoas serem mais livres. Pretende dar poder de compra às pessoas. Não é algo ruim. Sou a favor. Mas demonstra que a liberdade atual é medida em cifrões. Quanto mais podemos comprar, mais livres somos. Somos irmãos na fidelidade dos créditos. O cidadão contemporâneo é o consumidor contemporâneo. O Estado fomenta instrumentos pro consumo.

A justiça é pesada com cestas básicas.

Isso esteve no discurso dos candidatos. Falou-se de segurança. Pra consumir tranquilamente. Falou-se de educação. Pra consumir mais e melhor. Falou-se de saúde. Como quem fala de um carro na oficina. Tornamo-nos máquinas que vivem pra consumir. Consumimos a vida no ato da compra. O espelho das nossas existências é a fatura dos cartões. Um futuro realmente livre está cada vez mais distante. Liberdade implica em afirmação. Não em negação. Liberdade está para igualdade. Mas uma igualdade baseada na compra não é igualitária. Sua medida é o poder aquisitivo. Não o desenvolvimento humano. Nega pra afirmar. Pauta-se em porcentagens. Não em vidas.

Achamos que bonsais dão frutos se feitos de puro plástico.

A religião poderia libertar. Mas Deus foi tomado dos pobres e aprisionado em palácios de mármore. Perdeu sua razão de ser. Há séculos a religião deixou de ser um instrumento de lutas. Virou calmante. Figuras como Cristo ou Buda são vendidas com ares de Dale Carnegie. Esqueceu-se do caráter revolucionário da crença. Ela foi substituída por anestésicos que nos consolam quando o salário acaba. Ou quando perdemos algum parente. A religião vedou sua porta pra liberdade. Tornou-se goteira pra prisão. Serve de marionete pro lucro.

O ouro substituiu a fé do mesmo modo que o brilho vale mais que a luz.

A liberdade plena é a ausência de corpo, diz Artaud. Desprovidos dos nossos apetrechos de bicho, podemos ser completamente livres. É uma provocação. Não significa que não devemos lutar por liberdade. Mas que devemos buscar uma liberdade sempre por vir. O além da vida só é além na vida. Só existem espíritos de carne e osso. Isso passa pela construção de uma identidade apegada à igualdade. Respeitosa quanto à diferença. Mas no Brasil nossa identidade se resume ao futebol e ao carnaval. Nossas lutas se restringem aos estádios e nossa felicidade a uma liberdade velada em fevereiro ou março. Essa identidade prende nossas possibilidades de mudança em uma sociedade na qual a família não é a célula do Estado, mas o reflexo microscópico do jogo de favorecimentos que é o Estado. A imagem de um pai caridoso quando convém e não justo como deveria ser.

Direito virou esmola – e não foi sempre assim?

As eleições de domingo confirmaram a regra. Não aconteceu nada de novo. Se o Brasil fosse um Estado suficientemente forte, não haveria razão pra tanto alarde. Mas quem entra na gestão estatal muda a atitude do Estado. O tendéu se justifica. O que está em jogo é a possibilidade de novos favorecidos e novos facilitadores ao favorecimento. Desde sempre foi assim. Não vejo futuro próximo distante desse padrão. Muita coisa melhorou nos últimos anos. Não se pode negar. Mas a única possibilidade real de mudança residiria em uma atitude do povo brasileiro que estivesse não apenas presa às discussões de mesa de bar. Precisamos de ações concretas que visem mudança a partir da construção de uma identidade que se reconheça com a liberdade e a igualdade. Então haverá espaço à fraternidade e à diferença.

Algo extremamente difícil quando a medida do cidadão é sua conta bancária.

O brasileiro tem medo de ser livre. O mundo caminha contra a liberdade. Restou a disciplina da compra. O vazio é a consumação do consumo. Não precisamos de exorcismo. Precisamos de análise. Problema é que nem Freud explica quando revoluções viram misticismos. A história não acabou. Acabamos com a história. Restaram umbigos. A serpente devorou o rabo. Teve uma congestão. Oroboro de cobra coral. Veneno que é alimento. O resultado somos nós. Minha esperança é a consciência disso.

Mas quem arrisca?

3 comentários:

  1. GianGuilherme@hotmail.com8 de outubro de 2010 às 02:15

    "Atitude do povo que estivesse não apenas presa à mesa do bar"
    Há pouco tempo vivenciei a realização de um importante negócio social; de grandes proporções.
    Havia aberta e fácil possibilidade de participação de quaisquer interessados em defender seus insteresses ou de representar seu grupo.
    De fato houve participação ativa de algumas poucas pessoas; mas algo chamou-me a atenção. Algo absolutamente importante eu percebi. Era a ausência daqueles sujeitos "presos à mesa do bar", "a rodas de chimarrão", "aqueles que chingam pessoas erradas", "que reclamam inutilmente".
    Fiquei a pensar "se eles tivessem saído do anonimato a história seria outra neste momento". Acredito que seria. E de fato seria...
    "A atitude das pessoas é que faz a diferença".

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  2. Precisamos de ação.

    Falar é fácil, é só mover a língua.
    Difícil é tirar a bunda do sofá e sair do anonimato, como dito no outro comentário.

    Essa inércia, essa quietude, esse silêncio...isso é irritante.

    Belo texto, Eduardo.

    Mais uma vez correto.

    Nos resta lamentar nossa nacionalidade, nosso país se suicidou...

    Um abraço.

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  3. Caro amigo Eduardo,

    Belo e oportuno texto.
    No entanto, dentro de toda a visualização de autofagia, inércia e conformismo lograda, certamente habita a ainda deveras tímida semente da tomada de atitude.
    Tentemos não fazer da dura consciência do real pulsão de morte.

    Forte abraço!

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