sexta-feira, 15 de julho de 2011

AS CEROULAS DE CORAÇÃOZINHO.

As comunidades detêm uma dupla face. Se por um lado favorecem laços afetivos entre seus membros, proporcionando, em tese, uma maior qualidade de vida para eles, por outro lado promovem uma vigilância desses membros, de maneira que o menor desvio de conduta que não seja compartilhado pelo senso comum como algo “normal” passa a ser punido. Cidades pequenas ou de médio porte, ainda que não sejam necessariamente comunidades, funcionam do mesmo modo, o que se comprova pelo fato de que em Santo Ângelo as fofocas e os boatos estão na ordem do dia de qualquer conversa que se queira missioneira.

Mas o que é interessante nas fofocas e nos boatos, é que geralmente aquele que é alvo do falatório é o último a saber do falatório. Talvez a lógica da cornitude dos cornos valha não somente para seus galhos, mas também para esses indivíduos, os quais, quando chegam a determinado círculo de conversas, percebem que um silêncio imediatamente se instala com a sua presença, circundado por olhares entre a desconfiança, o riso e o sarcasmo da crueldade da palavra. Mas isso não seria nada se as fofocas e os boatos não influenciassem todos os aspectos da vida desses indivíduos, desfilando seus tentáculos de escárnio até mesmo para sua vida profissional.

Porém, esse não é o fator mais curioso das fofocas e dos boatos. Saber que existem pessoas que falam mal de X, Y ou Z, todos sabem. É impossível conviver em sociedade agradando todos com os quais se convive. A inveja, a vaidade e o egoísmo, sentimentos existentes até no mais santo dos homens, estão presentes por toda parte, o que se percebe quando conversamos com uma pessoa e notamos que ela não está nos ouvindo, mas apenas esperando o seu momento de falar. A realidade peculiar dos boatos e das fofocas, por outro lado, é notada quando se sabe que ainda que o sujeito alvo do falatório tenha tomado algumas atitudes “normalmente errôneas” em sua vida, aqueles que falam desse sujeito tiveram atitudes “iguais” ou “piores”, mas, talvez por conivência da própria comunidade em razão da posição que ocupam na sua estrutura social, não acabaram sendo “mal falados”.

Claro que dívidas não pagas fazem surgir sangue nos olhos de qualquer um, pois todas as pessoas mudam completamente quando se fala de dinheiro. Com certeza que desavenças entre amigos em razão de uma namorada, por exemplo, não são coisas que se resolvem de uma hora para outra, até porque, por envolverem sexo, o qual, de um modo ou de outro, é a razão das nossas vidas, podem resultar em tiros e facadas. Mas acontece que as fofocas e os boatos, quando atingem um homem “razoavelmente público”, costumam ser sufocadas pelo esquecimento que as “pessoas não-públicas” acabam tendo em relação ao fato, tratando seus olhares desconfiados e sarcásticos como algo corriqueiro na moralidade cotidiana e egoísta por essência, já que, ocupada em olhar para os sapatos dos outros, termina por não perceber o próprio guedes que calça.

O recente caso envolvendo um vereador de Santo Ângelo que teve determinado vídeo de celular veiculado no Youtube é uma prova disso. Quase todos sabem do assunto, mas poucos o comentam em razão de certo “acordo de cavalheiros” que existe com os homens que tem certa fama na cidade. O próprio fato do Maluf ser tão mal falado há tantos anos no Brasil e sempre estar em cargos políticos, também é uma prova incontestável do que falo. Quanto mais conhecida a pessoa, mais existe a tendência de que seus “erros” sejam esquecidos, isto porque aqueles que falam podem se aproveitar desses mesmos erros para conseguir favores dessa pessoa “mal falada”.

Se é um despautério moral existirem tantas funerárias perto dos hospitais da cidade, fazendo com que os pacientes observem a possibilidade da morte das suas janelas, não interessa. Todos falam, mas ninguém quer entrar em uma suposta polêmica sobre o tema. Se é uma hipocrisia a quantidade de “carrões” que temos na cidade sob propriedade de pessoas que os financiam em cem vezes e ainda assim posam de “ricas” e “influentes”, fazendo com que mais de setenta e cinco por cento da nossa frota de veículos esteja nas mãos dos bancos, igualmente não interessa, já que o importante em Santo Ângelo é manter as aparências. Se o enorme orçamento do Estado do Rio Grande do Sul para atividades tradicionalistas acaba por sufocar outras manifestações artísticas muito mais importantes para o nosso desenvolvimento cultural, não é importante discutir, sendo que aqueles que se aproveitam desse orçamento sempre estão no rol de “pessoas respeitadas” e “dignas” da sociedade. Nada disso, apesar de talvez estar presente nas conversas em todas as lojas e escritórios da cidade, vêm ao caso para um debate público, amordaçando as opiniões contrárias à “normalidade” no limbo das paredes do seu quarto, refletindo bêbadas, entre polares e fins, a situação deplorável do Estado, do país e do município.

Tudo isso atesta a realidade de que existe algo repulsivo em nossa cordialidade cotidiana. Mesmo que Santo Ângelo seja uma cidade belíssima, a moralidade predominante dos seus habitantes faz com que ela se torne tão indigna de contato quanto os leprosos medievais. Apesar de sermos uma cidade que conta com quase oitenta mil pessoas, a aceitação do “diferente” esbarra nos risos desconfiados e irônicos que esse “diferente” suporta quando entra em uma roda de conversas “comum”. A estagnação missioneira não se relaciona apenas com nosso atraso econômico, mas também com nossa resistência ao “novo” e àquilo que passa distante do que acreditamos ser “correto”. Se somos uma comunidade, conceitualmente não posso afirmar. Mas que somos uma cidade polarizada pelas aparências, nas quais as fofocas e os boatos, polvilhados pela hipocrisia e pela mentira, são até mesmo um recurso certeiro para quem deseja “crescer” nas suas fronteiras, posso afirmar e assinar embaixo. Além de sermos a cidade da elite arrogante e da juventude falida, somos a cidade não da moral de cuecas, mas da moralidade de ceroulas de coraçãozinho. Condenada ao cheque especial e aos carnês de financiamento, ela tem sua consciência aliviada pela madrugada atrás do Teatro Antônio Sepp e todos os prazeres que ela traz consigo.

2 comentários:

  1. e é tão fácil ir adiante e esquecer que a coisa toda está errada...

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  2. uhsuahsua É mesmo. e com a nova moda dos jovens, algumas ceroulas de coraçaozinho acabam aparecendo, a maioria acha lindo e acabam aproveitando este status para aparecer, mesmo sabendo que trata-se de uma grande farsa.

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