Quatro da manhã. Senti o sol na garganta. O
infinito era um gosto que não diluía em meu paladar. As coisas se desenhavam como
sempre foram. Quietas, estrelas diziam aquilo que eu precisava ouvir. A pele do
universo, feita do tecido do meu corpo, expelia em seu horizonte as gotas do futuro.
Não são necessárias pontes, rodovias ou trens para atingir o ponto mais
longínquo. É apenas preciso ouvir, mesmo que ela jamais responda minha carta.
Eu escorregava naqueles olhos de limo. Meus pés não conseguiam fazer nada além
de deslizar por sua retina. Era como se tudo estivesse contido no lugar mínimo
do seu olhar – onde minha imagem se fez fotografia. Os óculos com certeza
haviam impedido um contato mais íntimo, mas tudo era questão de tempo. Chegaria
a noite em que eu decifraria seu corpo com as pontas dos dedos. Sentiria cada
traço de pele aniquilar meu passado, construindo muda os contornos de algum
amanhã. Bom dia, eu diria ao amanhecer, vendo a água do copo filtrar a luz da
manhã no trajeto dos seus lábios. Ela abriria as pálpebras devagar, tiraria do
rosto os cabelos caídos, sorriria entre a imprecisão e o amor e então me
beijaria sem a eloquência vaga de qualquer poema. O quarto poderia ser pequeno,
os móveis não precisariam existir. Poderia haver apenas a cama, devidamente
embalada em um lençol branco, as janelas, parcialmente cobertas por uma cortina
amarela, e nossos organismos produzindo em si e para si o egoísmo que é viver
enquanto tudo simplesmente morre. O sentido das organizações de nossos destinos
estaria decifrado. Bastaria um toque sutil para que um planeta inteiro
crescesse diante da nossa porta. Os vizinhos ouviriam nossos risos, nosso
segredo ecoando de andar em andar. Éramos amantes. Mas o certo e o errado
nasciam assim que levantávamos e íamos cada um para sua casa. A vida voltava ao
giro de sempre, aos assuntos de sempre, aos trabalhos de sempre. Eu com meus
escritos. Ela com seus clientes, pensando que talvez devesse mudar
completamente sua existência a partir de uma vontade antiga de viajar e viajar.
Mas viajar e viajar fazendo o quê, eu perguntava. Ela sorria com o dorso e me
envolvia em seu corpo para me responder por ao menos uma hora. Mais que isso
não era necessário. Em seu suor eu liquefazia todos os medos, toda angústia e
todo desespero sem me dar conta de que aquilo iria acabar rapidamente. E
acabou. Era sábado quando você me chamou na sua casa. Achei estranho. Seu
marido e seus filhos estariam lá, mas você disse que me apresentaria como um
novo sócio do escritório. Depois do jantar, derrubei o copo de whisky para
ficar a sós com você enquanto seu homem ia buscar um pano. O que é isso, disse
olhando firme nos seus olhos que evitavam deslizar nos meus. É a ressaca, você
falou. Não precisei de mais nada. Saí e as placas haviam sido arrancadas de
todas as ruas. Não havia mais esquinas, praças, políticos ou poetas
homenageados, não havia mais jeito sequer de chegar até a rodoviária. Os
caminhos da cidade agora existiam apenas na lembrança. O que me restava fazer?
Dormi na frente do teatro. Nós havíamos planejado visitar Paris. Iríamos
comprar presunto e pão para não gastar com restaurantes. Para a sede,
conheceríamos apenas vinhos. Largaríamos nossas famílias, nossos filhos, nossos
empregos e nossas confusões para sermos nós e mais nada. Dormir na frente do
teatro era uma resposta a isso. Toda encenação da nossa paixão não passava de
uma peça mal escrita por um dramaturgo bêbado. Um adolescente à Salinger que
faria dos personagens meros bonecos de palavrões. Filho da puta, toma no cu, chupa
uma rola. Esse seria o vocabulário das coisas. Mas eu tinha que continuar,
apesar de desejar uma semana de janelas fechadas. Vendi nosso apartamento.
Quando entreguei as chaves, deu pena daquela cama. Era ridículo. Mas tudo é
ridículo quando prestes a morrer – e desconfio que sempre estamos nesse
patamar. Ainda vi você algumas vezes quando passava pela frente do seu
escritório. Não cumprimentava você. Apenas lhe via entrando no carro com uma
pilha de processos. Eu, com meu casaco preto rasgado, ia trabalhar sem a menor
vontade. Falava o que tinha que falar e de resto, puta que o pariu. Não gostava
que me perguntassem qualquer coisa. Tudo era motivo para que minha raiva
brotasse de uma hora para outra. Aquela poesia de antigamente fora embora. Não queria
mais saber das últimas teorias da física e muito menos da natureza da matéria
escura. Bastava meu vazio para que tudo tivesse o pleno sentido de nada. Era
isso que eu era: uma falta que caminhava, um rancor que respirava, um absurdo
que almoçava e jantava nas horas mais estapafúrdias. Querer mais seria ir de
encontro aos meus sentimentos. E meus sentimentos eram pura negação. Saí com
outras mulheres. Sexo por sexo, comovido com a ausência de sentidos. Gozava e
dizia que tinha que ir embora. Não suportava dormir com alguém ao meu lado.
Parecia que era algo como negar tudo quanto eu vivera com você. E por mais que
eu tivesse raiva de você, que eu quisesse estrangular você, seu marido e seus
dois filhos, precisava viver com essa ausência para conseguir levantar dia após
dia quando o relógio despertava as horas. Qual foi a verdade disso tudo? A dor?
Minha existência completamente absurda e mais hermética que qualquer Sartre,
que qualquer Kafka? Na realidade, tudo isso misturado. Jazz e whisky na pele
dos discos do Miles.
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